o contrário de desapego

me rendo. não tenho desenvoltura para resolver coisas simples. imagine as outras…

sempre que quis trocar de carteira um imenso caos se instalou por aqui. a primeira coisa é a coragem de abandonar a companheirinha de tantas aventuras e desventuras.

todas as carteiras que tive passaram a fazer parte dos meus passos, conheceram minhas bolsas, viajaram comigo, olharam lugares, desembolsaram quantias em livrarias, mercados, postos de gasolina, lojas, bilheterias de teatro, cafés, restaurantes, escolas e tudo que gira no mundo capitalista. todas começaram limpinhas, esticadinhas, macias e se transformaram num pedaço de couro cansado e sem forças.

chega uma hora em que é preciso dizer adeus. negar à camarada que continue testemunha ocular e muda dos processos vividos não é tarefa fácil. mas na outra ponta da história, está, a coreografar a dança do acasalamento, faceira e animada, a substituta. ela chega, com o viço da idade, mostrando divisões, bolsinhos, funcionalidades, superioridades. irresistível. com dor no coração anuncio o funeral da antiga.

decisão tomada, fim de problema, certo? não! é aí, justamente aí, que a tragédia tem mais cores. e dores.

com o passar do tempo, a carteira ganha vontades próprias. se apropria de papeizinhos, cartões de visita, extratos apagados, pétalas, santinhos, fotografias e um milhão de coisinhas bem pequenininhas que eu não guardei, mas que ela achou por bem receber como esconderijo. as vezes penso que a carteira faz isso repleta de boas intenções, para disfarçar magreza admissível apenas em top model de passarela se fosse contar somente com as cédulas. mas as vezes acho que ela é perversa; guarda um número de telefone sem remetente, um papel de bala sem lembrança, um cartão de quem nunca vi, um bilhete de cinema doído, tudo para me atormentar o juízo.

e esse é o principal foco do meu desespero. o que fazer com os habitantes antigos que estavam ali, dormindo tranquilos, entregues à paz do escurinho com veneziana que vez ou outra se abria para ter ar renovado? o que fazer com a imagem de São Jorge, se não tenho crença? o que fazer com as 3X4 das crianças? e aquela nota de um dólar que ganhei já não sei mais de quem? e a folhinha de louro? e o bandeide já sem cola para uma emergência que nunca chegou? o que fazer com essa tralha toda que não se permite ir para o lixo?

olho pra tudo e me sinto vestida de preto, capuz, foice na mão direita, como se eu fosse a mensageira de uma terrível notícia, a responsável pelo passamento, destruidora definitiva de tantas memórias e esperanças e fatos e lembranças.

sem forças para assumir tantas responsabilidades, rendo-me. à Cesar o que é de Cesar.

cuidadosa, lupa nas mãos, faço, como diz a Sylvia, a ciranda dos trecos, joeiro. quem ficou na peneira continuará me acompanhando por aí. quem escorregou pelas frestas da inutilidade fica na antiga moradia e transporto casa e habitantes para o condomínio que comporta os pares. espécie de retiro dos artistas que mantenho num cantinho do maleiro: carteiras velhas com um sem fim de coisas dentro.

enxugo as lágrimas, começo nova relação. e quando tudo já está resolvido, o porta-moedas chega e reinicia a conversa, a trama, o drama.

 

quer comentar? não se acanhe.

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