tenho a impressão de que tudo que escorre para o papel é uma espécie de resquício de mim, um resto, vestígio de alguma dor ou alegria que finjo. mas, definitivamente, só finjo aquilo que sinto.
talvez as palavras sejam como lágrimas. gotas que não são boas ou ruins, mas que são boas ou ruins. o eterno exercício da comunicação, a tentativa sem fim de dizer o que não é pra ser dito, todas as emoções a pular, se jogando, suicidas, e se espatifando no teclado.
sei que há jeito mais sensato de viver. e onde não há, que é o meu caso, deveria ter um pouco mais de talento para fazer transbordar essa imensidão que se acumula todos os dias – ilha cercada de sustos por todos os lados.
tenho cá meus próprios tribunais e sei que nem sempre consigo ser clara. esse treino de decodificação muitas vezes me desmoraliza. causa comoção pro lado errado. desperta humores equivocados, passos tortos, interpretações errôneas. porque sou eu porta-voz de mim mesma e só de mim e do que sinto e do que me angustio por sentir e do que minto sentir – e só minto o que sinto de verdade. mas as palavras são libertárias e viajam assim, se metendo a tocar o próximo, batendo varinha de condão como se fossem de quem as lê. e de fato elas são de quem as lê. uma vez postas, estão sujeitas a todas as chuvas, trovoadas, arco-íris, campos em sol… quem lê, absorve à sua própria moda. depois que se despregam, que se dane a autoria, as palavras já são, estão, têm nomes, sobrenomes, significados, cores, cheiros. são flechas de alvos que se movem em suas direções.
a irresponsabilidade da escrita mora no mesmo quarto, divide cama, faz comunhão, com o não pensar em interpretações. no entanto, não há outro jeito. é uma condenação anunciada, pecado preliminar. a escrita é o vício e a interpretação a consequência.
me assombra também: as vezes gosto de tratar de assuntos de outros tempos. do futuro, do passado. mas a túnica do leitor é bordada com as contas do agora. como se fosse de hoje o que é de ontem ou como se o amanhã se precipitasse. não tenho humores para as explicações e a ignorância sobre isso me irrita um pouco. jogo a toalha e me rendo ao fato: nenhuma leitura me pertence. e é aí que assino minha confissão de incompetência ou de jactância.