penso na última letra. na zeta de minha vida, aquela que encerrará um ciclo que não teve motivo de início e da mesma forma se despedirá solitário e caído sem alterar o curso dos homens.
a última carta garantirá que terminei a rotação dentro da escrita. mesmo que ela seja assim, modo particular, com destinatários muito íntimos e que já não precisarão de minhas derradeiras palavras.
nessa missiva, não quero descrever o que aprendi nos livros, o que pensei sobre a humanidade, o que moveu minha luta por dias melhores.
para o final, só o sabor doce dos sóis azuis e das particulares ondas que me agarraram e me lançaram no mundo a pontificar que há dourados e valiosos momentos que ultrapassam as perdas, as pedras, os perdões que não aconteceram.
construirei para o meu bilhete final uma lista imensa, imensa como é a vida, e condensada, condensada como é a vida, de minhas pequenas belezas – aquelas que me garantiram estar entre sorrisos e cores, alumiações e clarezas, brilhantes e vitórias.
quero escrever sobre os prazeres: do encontro, da rega diária das plantas, do cheiro do livro, do sorriso matinal, da compra da luneta, da retirada das cortinas, do passeio na praça.
quero escrever sobre a simplicidade de passar o café e poder, letra por letra, descrever o cheiro que invade a casa, que toma a mesa, que mancha a xícara, que envolve o corpo.
quero escrever sobre a primeira nota que anuncia a música, a primeira frase do livro (Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo) e as duas primeiras vezes que ouvi a palavra que mudou tudo, mãe.
na minha última comunicação farei questão de contar os detalhes de todas as experiências da pele, a que me vestiu, despiu e marcou na definição das cicatrizes e nos ensaios macios e suaves dos toques.
é possível que eu escreva sobre todas as vezes em que respirei o cheiro do mar; tratei em voz alta as canções que se misturaram ao barulho do trânsito e alcancei o céu atrás de um porto melhor, de um voo mais alto ou de uma cidade mais bonita.
talvez fale das tatuagens e seus excessivos significados e do prazer de tomar um copo d’água durante uma tarde seca de calor.
minha última letra, a zeta de minha vida, será dedicada à conclusão de que a vida foi boa e que minha retirada é o que comprova uma experiência de prazeres, que se não são mais possíveis, retiram o sentido de continuar.