estava trabalhando no quartinho. uma certa monotonia no barulho das teclas, do rádio, dos carros que insistem lá fora.
escrevia, cheia de desalentos internos, sobre o Congresso Nacional. nome tão bonito para esculhambação tão sórdida.
Lívia chegou em gritos e risadas. mamãe, mamãe, corre aqui, vem aqui. me pedia pressa e me pedia calma. tinha um sorriso alegre e aflito. segurou na minha mão e fomos até meu quarto.
a janela estava aberta numa frestinha de nada. coisa de uns três centímetros. e foi por esta fresta que ele entrou.
primeiro parecia assustado, conversamos e se aquietou inteiro: asas, olhos, bico.
ficamos ali alguns momentos, Lívia, o beija-flor e eu, dividindo o mundo. nenhum pensamento.
abri a janela e ele permaneceu, pose para o retrato.
num desses milagres, que bem poderiam ser acontecimentos cotidianos, estiquei o dedo e ele subiu, ficou pousado pela eternidade de uns cinco segundos e depois voou.
bateu asas, se atirou no céu e sumiu.
é possível que nunca mais nos encontremos, é provável que toda vez que eu veja um beija-flor, imagine que seja ele, de volta, a me cumprimentar. mas é certo que eu nunca esquecerei da visita de segunda-feira e do toque das patinhas delicadas em meu indicador.
às vezes, a pena vale.