não tenho religião. a fé se limita às possibilidades de realização. mas dou ouvidos a alguns sinais, instintos. afinal, nem só de inteligência vive o ser humano. se estou a andar por uma rua e uma voz delicada me sopra ao ouvido para mudar de via, nem discuto, não quero saber dos motivos, obedeço e pronto.
hoje saí cedo de casa, depois de uma caminhada de quase duas horas, voltei com vontade de conversar com o sofá. eu só queria descanso. logo uma inquietação me dizia para levar o cão à pracinha. como é de costume, obedeci.
antes mesmo de sentar em meu local habitual de onde espio árvores, flores e o cão, uma senhora apareceu. um jeito meio maluquete para os padrões dessa terra. me contou um pouco de sua vida. profissão, amores, família, perspectivas de futuro. e, sem mais, entrou num discurso geral, a falar das pessoas de modo geral.
mão e luva.
entendo que as aflições humanas são muito parecidas. os sofrimentos têm uma meia dúzia de assuntos diferentes, são variações de temas comuns a quase todos. mas a senhora tratou em linha reta sobre a minha vida. falou como se estivesse na minha cabeça e soubesse de tudo, tudinho, que me passa. verbalizou uma por uma minhas pendengas e falhas. fiquei emocionada. tão simples e tão cheia de conhecimentos humanos que por várias vezes olhei em volta, a achar que alguém que me é mais próximo a havia contratado para me dizer sobre mim. depois desisti, porque ninguém, nem quem me é mais próximo, sabe daquelas coisas…
passei uma hora ouvindo-a. uma explanação feita num português sofrível, com frases incompletas e palavras mal empregadas. um discurso que não obedecia as normas mínimas da fala. tudo verdade. exemplos soltos no espaço em que eu ia me encaixando, um a um. fui vendo a minha vida e meus conflitos naquela exposição. o lance foi impressionante.
nos despedimos na fraternidade de um abraço. voltei pra casa com meus botões, todos roucos de tanto pensar.
nada resolvido, mas com grande fé na humanidade.