no silêncio daquelas sementes que boiaram no ar do quintal da casa da minha vó numa tarde de outono, pensei que o dente de leão que eu soprava era o que de mais enigmático existia no mundo. não por conta dos traços botânicos, mas por aquela maneira tão grandiosa de a partir de um sopro se transformar em muitos pedaços e cada um ser dono da própria vida e viajar autônomo pelo espaço.
nunca mais esqueci minha sensação ao ser recortada por esse pensamento. na minha cabecinha de criança, cada parte da flor era um universo que precisava se separar do original para poder viver.
aquilo provavelmente tinha ligação com minhas ansiedades infantis e meus mais profundos desejos de trocar de etapa, de crescer de uma vez, de sair da puerícia limitante dos meus primeiros anos.
soprei muitos dentes de leão e toda vez esse sentimento de multiplicidade a partir do indivíduo me visitou. não assim com essas palavras e essa clareza que procuro decodificar agora, tantos anos depois.
os traços daquelas horas não tinham raízes intelectuais, estavam mais para as sensações. nunca conversei com ninguém a respeito. e acho que foi bom. se tivesse por perto um adulto capaz de compreender minhas inquietações ele poderia, na boa intenção de me ajudar, ter formulado respostas e com isso brecado minhas perguntas, limitado minhas questões. fosse eu muito sortuda e me aparecesse um adulto cheio de compromissos com as reflexões, o efeito poderia ter sido outro e eu ter potencializado os caminhos das descobertas.
nunca saberei.
sou grata aos anos de solidão da infância. a eles devo esse tipo de memória que me coloca tão próxima do que sou hoje; eles reafirmam esse traço que me liga a mim mesma quando estou à beira do abismo achando que absolutamente nada restou do meu começo; são eles aquele último olhar que sobra na frente do espelho, a imagem final que concentra todo o cerne do princípio que veio cambaleante se desenvolvendo e dissolvendo pelos jardins…
eu me reconheço nos anos de solidão da infância porque eles me dizem que sou semente de dente de leão e posso vagar descolada pelo espaço, basta um sopro.