meu ex-marido teve um enfarte.
falei alô e ouvi a frase meu pai teve um enfarte e o silêncio de todos os segundos do tempo – deve ter durado na vida do relógio só o momento de uma puxada de fôlego, mas enquanto o ar invadia os pulmões do meu filho para ele concluir que estava tudo bem, senti meus olhos tremerem, as pernas bambearem.
o pensamento é mais rápido que a fala. e todos os processos internos acontecem no solavanco do primeiro estar. mal estar, bem estar.
experimentei sensações muito ruins. o medo, a impotência, a preocupação são sensações?
quando eu era menina, vi meu avô estirado no chão da sua cozinha em seu fulminante. vi minha mãe se desesperando. vi pessoas o carregando. vi seu relógio e sua aliança. vi os olhos baixos e marejados da minha vó. vi o medo, a impotência e a preocupação.
medo, impotência e preocupação são coisas que a gente vê?
nunca soube o que dizer diante de uma tragédia.
a primeira coisa é esse caracol em que me enrolo em busca do silêncio, porque no silêncio não há nada.
depois pensei no papel de adulta que precisava encenar e fiz perguntas de ordem prática: em qual hospital seu pai está? o que aconteceu? o médico, disse o que?
meu filho, que já tinha passado por todas as emoções – medo, impotência e preocupação são emoções? – falou sobre tudo. encenou o papel de adulto e no seu tom fui me recompondo, me tranquilizando.
depois de todas as garantias, todos os telefonemas, todas as respostas e palavras como cateterismo, angioplastia e artéria veio de novo, e mais uma vez, e outra, aquela coisa de pensar na fragilidade, na brevidade, no estalar de dedos… foi um choque. uma punhalada. um soco no queixo.
lembrei daquele trecho do Suassuna em A Pedra do Reino.
“Considerai que qualquer coisa é bastante para me tirar a vida! Uma gota de salmoura que desça ao coração entupindo uma artéria, uma veia importante que se rompa em meu peito, uma sufocação de tosse, uma forte opressão interna, um fluxo impetuoso do meu sangue, uma Cobra-Coral que me morda, uma febre, uma picada, um corisco de pedra-lispe incendiada, um raio, uma pedrinha de areia nos rins, um inimigo audacioso, uma pedra que se despenque de um serrote – tudo isso e qualquer coisa pode me coalhar o Fel e me cortar o Nó do sangue, roubando-me a vida em dois tempos! Por isso, Senhor, não leveis a mal que, enquanto estou aqui no Mundo, capaz de gozar esta vida que Vós mesmo engendrastes – juntando o barro da terra sertaneja com o Sol e o furor dos vossos lombos – eu vos preste as homenagens deleitosas que devo à Divindade e que as inicie bebendo uma boa lapada do meu Vinho Tinto e Sertanejo da Onça Malhada!“