estou aqui, alojada a um passo da velhice. basta um sussurro e, pimba!, desabo lá para dentro.
tenho vontade de escrever sobre isso.
tenho vontade de reunir minhas rugas, manchas, marcas, cabelos e escrever sobre isso.
um dia desses fiz um texto que de tão realista a respeito dessa condição, tive que jogar fora.
não suportei lê-lo.
não aguentei saber o que eu sei.
depois me arrependi. julguei que poderia ser útil para alguém aquelas palavras tão cruas e duras.
mais tarde, comemorei a destruição. um texto meu não tem que ser útil. um texto meu não tem que se prestar a uma causa. gosto dos textos imprestáveis.
e uma vez mais, lamentei. nenhum texto tem que ser destruído porque é encharcado de realidade – do contrário a literatura não prosperaria, porque é tudo verdade: a fantasia, a invenção e o absurdo; a novela, o nonsense e o bolero; a crônica, o relato e a observação é tudo verdade.
tenho essa verdade que me perturba e me azucrina com a urgência de quem conhece o passar do tempo.
é preciso tratar disso.
estou no caminho que vai em direção da morte. na minha frente estão meus pais; atrás de mim, meus filhos.
não há alternativa.
mas o que me perturba nessa véspera da velhice é de outra ordem. e é dela que preciso tratar.