quem são os donos das malas que dão mais de duas voltas nas esteiras dos aeroportos? por que a minha bagagem demora a eternidade para se arrastar deitada, ponta-cabeça, estrupiada e cansada até que me olhe aliviada?
não importa o tipo de etiqueta, a cor, o número de fitinhas, identificação, recados. não importa nada!, minhas malas sempre chegam depois e inevitavelmente com um ar desmoralizado, rodinhas pra cima, moral no chão.
tenho uma teoria meio Toy Story de que a culpa por esse tipo de coisa não é do pessoal que cuida da carga. o que deve acontecer, de fato, é que as malas, uma vez no porão do avião resolvem contar porque viajam… e começam uma conversinha amena a relatar sua vida útil, cheias de roupas e quinquilharias de lugares, e a inútil dentro de guarda-roupas que mal abrem as portas durante o ano inteiro para um feixe de luz. tudo é tranquilo até que uma mala toda dura, envernizada, cheia de pinturas de Romero Brito diz que deveria ter prioridade na hora de sair do avião e começa a deslizar para perto da porta para garantir seu lugar. a maioria não gosta, mas é pacífica e não faz movimento, zíperes fechados. mas umas três ou quatro, que têm espírito combativo, resolvem que a injustiça não pode se prolongar e armam suas rodas giratórias, inflam-se no cinturão expansível, empinam seus puxadores e vão pra guerra. primeiro brigam a mesma briga, contra a soberba da vestida de Brito, depois passam a disputar o primeiro lugar na fila e o que antes era uma luta de todos vira uma causa particular, um salve-se quem puder. até os cabritos que não berravam entram na dança e rola uma engalfinhação geral.
quando o avião pousa, todas assumem personalidade inanimada, enrijecem-se e se calam. a confusão de suas posições é justificada por uma ou outra turbulência ou pelo sacudir natural de pista, decolagem e aterrissagem.
minhas companheiras de viagem já no carrinho que as conduz do avião até a esteira, num último suspiro, decerto, ainda tentam se impor para chegar logo até mim e minha pressa de aliviá-las do peso e aspirá-las para que possam repousar no escurinho do armário, e lutam a última batalha. perdem. sofrem. e o que as aguarda é uma rasteira final que as deixam na lona, últimas da fila, até que me reencontrem quase mortas.
todo este caminho consigo compreender bem e vejo com nitidez as cenas mais sórdidas nos porões dos aviões. o que não dá mesmo para entender é o mistério das primeiras a desembarcar e suas infinitas voltas diante dos olhos de todos. abandonadas, tontas, fatigadas, elas suplicam por um braço forte que as tire do circuito interminável, solitário e exposto de rodar debaixo das frias luzes do aeroporto.
quem são os donos dessas malas? onde vivem? o que fazem? em quem votam? o Globo Repórter bem podia fazer uma matéria para esclarecer tudo isso.