eu lembrava de quando era criança.
de um tempo para cá passei a inventar memórias. elas me chegam a partir de coisas que eu ouço. invejo a cabeça dos meus pais, embarco no que contam e finjo que sei do que estão falando. finjo com tanta força que passo a acreditar também.
nessa madrugada, entre um soluço e outro, resolvi que tinha uma balança no quintal. e ela era presa no galho de uma árvore. ficava suspensa numa altura que quando parada, era fácil de subir e descer, mas na velocidade voava para um mini precipício, em cima de um barranquinho de grama, que para mim parecia muito alto. no final desse quintal, lá no final desse despenhadeiro, um muro cinza e uma casinha de cachorro, com um dogue branco preso numa corrente dormindo sem ligar para os meus gritos de medo e fascínio ao levantar voo.
eu usava um shorts vermelho com listras, camisetinha surrada e havaianas brancas e azuis.
quase lembrei da casa, mas como me balançava de costas para ela, não consegui muito a não ser saber que era de um marrom bem escuro, quase vermelho, e de madeira.
sei que esse não foi o quintal da minha infância. no terreno da minha casa tinha um escorregador em que eu subia para todo tipo de atividades: espiar a vizinhança, pegar ameixas da árvore ao lado, conversar com a Rosilene, me esconder do mundo.
liguei para minha mãe hoje de manhã e contei sobre o cenário. com um pouco de perguntas, uns desvios de rota, acréscimo de um ou outro detalhe, descobri que a casa existiu, que a balança esteve lá e o cachorro e o quintal em declive e o temor da altura e a sedução pelo atrevimento. até o shorts vermelho, “que você nunca tirava”, e o chinelo e um cabelo curtinho com franja que não mencionei antes.
tudo real. tudo meu passado, que quando me chega assim, a conta gotas, eu acabo duvidando e colocando na caixa das invencionices.
saber que isso é um pedaço da minha vida e não um delírio atrás de memória, foi tão reconfortante que comecei a acreditar que aquela menina que acordava antes das seis da manhã só para poder ficar quieta na solidão da casa; que aquela menininha que escondida ligava o rádio de madrugada, volume muito baixo, para ouvir músicas; que aquela criança que sentava sozinha no recreio e escrevia no diário a rotina da escola… que todas aquelas fatias que me faziam uma protagonista solitária com pensamentos secretos, talvez fossem só coadjuvantes de um personagem maior, com mais possibilidades, mais feliz do que esse que, consciente, trago na memória.
consigo ver meus pés, unhas meio sujas de terra e grama, esticando-se para pegar embalo e obedecendo o movimento toda vez que a balança passava do ponto de partida, a encolher as pernas para trás.
hoje, acho que fui uma criança alegre que se atirava no precipício e sentia o vento batendo no rosto, sem se importar com o cachorro que dormia vagabundo no final do quintal.
é possível que eu tenha sido mais feliz do que me lembro.