meus móveis, minha vida

ensaio a troca do sofá, poltronas, baú e mesinha da sala. todo mundo está comigo há mais ou menos uns 20 anos me acompanhando pra cima e pra baixo em diversos espaços e composições.

gosto dos móveis e de como se espalham por aqui, mas gosto mais ainda de tudo que me lembram. são testemunhas da minha história. criados-mudos de outros formatos que observaram tudo em silêncio, no máximo um ranger de molas.

quantas conversas, beijos, lágrimas, brigas, confidências, risadas, brindes, murmúrios, silêncios…

os móveis da sala guardam boa parte da minha vida adulta. foi da poltrona que a Lívia se soltou para dar os primeiros passinhos independentes. sentado no sofá o Dé me contou de sua data de partida para Portugal. espichada na poltrona de leitura ouvi, primeira vez, a música da minha vida inteira. o baú que guarda os vinis que ainda insistem por aqui era o poste preferido do cachorro de um vizinho, diariamente fugia de sua casa para marcar o meu território como seu. na mesinha da sala quase todas as flores que já recebi, taças, livros, cinzeiros, documentos, brinquedos, chaves, carteiras, comidinhas, telefones – porta-tudo incansável.

há uns anos, Lívia e eu exaustas de manchas e marcas decidimos que era hora de trocar a roupa do estofado. com cuidado, escolhemos estampa, cor, tecido, textura, signo, religião, preferência política, astral e encomendamos a alfaiataria. quando as novas vestes chegaram ficamos inconformadas, detestamos. descobrimos que gostávamos mesmo era do original e quase chegamos à irracionalidade de procurar o estofador para saber da possibilidade de recuperar a roupa antiga. a guria da loja pediu fotos do antes e depois, tiramos (são essas que estão aí em cima) mas não tivemos coragem de encaminhar, porque o modelo anterior era incrivelmente mais bonito.

na época em que o cão ainda conseguia pular, ignorava as broncas e trocava sua cama na área de serviço por um cantinho no sofá. no mesmo sofá a multidão da família Educativa se espremia para os almoços de oito horas. e também lá chorei minhas separações e comemorei encontros. um sofá e uma vida inteira.

mas chegou a hora de uma neutralizada no ambiente. começar do zero, virar de página. abrir espaço para que o novo entre e comece o relato desses tempos.

enquanto minhas cortinas me olham e gargalham e ainda não tenho ânimos cuteleiros para dar-lhes fim, vou tratando do que posso, a renovar a vida.

quer comentar? não se acanhe.

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