uma vez li um artigo que dizia ser possível que traços de memória fossem passados pelo código genético.
pais, avós, bisavós e toda a imensa árvore poderiam deixar um fio do que armazenaram numas ligações neurais da nossa composição.
não lembro dos detalhes, só que essas recordações não eram nítidas, transitavam no campo das sensações, tipo um déjà-vu muito abstrato.
gostei de pensar que os baús que carrego são ainda mais entulhados com outras vidas, embora não tenha conseguido achar o fio da meada para o começo disso. porque se os filhos dos filhos dos filhos dos meus filhos levarão na memória deles uma coisa que eu vivi, qual coisa é essa? só pode ser a que vivi antes dos meus filhos nascerem. e o resto das minhas coleções só serão no futuro se eu tratar delas em registros concretos – como por exemplo nessas minhas abstrações.
mas em mim se dá uma coisa diferente. arrasto pra lá e pra cá as recordações que são dos meus descendentes.
como agora, por exemplo, sentada aqui no pátio da reitoria e lembrando nitidamente do que não vivi, mas soube pelos relatos do Dé.
poucas vezes ele me contou sobre seus bate-papos aqui. mas fez isso com tanta verdade nos olhos e de um jeito tão envolvente, que tudo ficou gravado em mim como se fossem minhas experiências.
lembro, por exemplo, daquela manhã muito fria, num tempo em que ele ainda fumava, do gesto que fez ao puxar o cigarro do bolso e tentar dar partida num isqueiro errante.
nunca esqueço de quando ele olhou pela janela do seu apartamento, confirmando que o Eduardo estava no pátio e desceu para falar dos detalhes do artigo que estavam escrevendo juntos. nesse dia, ele também fumou.
sinto saudade do encontro pontual, sem hora marcada, depois do almoço no RU. nunca comi no Restaurante Universitário.
tenho uma coleção de lembranças que não são minhas. o Dé conta um pouco do que é meu, sem que eu tenha vivido.