há um roedor morto no quintal. um tipo pequeno, bem pequeno, miúdo, sem cauda. seu corpo jaz de olhos abertos e pelo arrepiado, cinzento e comprido.
um misto de nojo e medo forma a covardia para tirá-lo dali. mas a imagem me incomoda.
cada vez que olho para o cadáver penso em cadáver. em morte. em fim. em um corpo que não é mais, que embora exista, não é mais nada. este paralelo entre a representação e o real é, para mim, como quando Foucault falou sobre o reflexo no espelho – isso faz parte do mundo real? o corpo sim, mas ele não é mais nada a não ser uma decomposição vazia do que já foi, mas continua sendo.
é difícil explicar sem recorrer a um texto longo, repetitivo e complexo porque não saberia fazê-lo de outro jeito. não farei.
a imagem também me desperta nojo. pelo menos um roedor andou onde eu caminho. aprendi desde menina que roedores não são confiáveis, que transmitem doenças, que invadem cidades, que acabam com sistemas. a peste.
aprendi que sou superior a eles e que o fato de dividirmos o mesmo espaço, não importa a condição, é nojento. e posso usar outros predicados como repulsivo, abjeto, sujo.
mesmo com o considerável número de problemas e pensamentos que o defunto desperte, não consigo removê-lo. também não consigo pedir ajuda porque não me cabe empurrar para outra pessoa este amontoado de aversões.
com o passar dos dias fui aprendendo a disfarçar, a tentar ignorar.
quando saio de casa, abro a porta, inspeciono a área, traço uma linha reta até o portão e sigo sem olhar para os lados.
se minha permanência no quintal é mais longa, separo o emaranhado de pensamentos como quem abre caminho numa porção de teias para encontrar racionalmente condições de estar ali.
penso coisas como: um dos tantos gatos da redondeza matou-o; um corpo é só um corpo; a casa é limpa e bem protegida contra seus irmãos; este bicho não pode me fazer mal; se estivesse vivo talvez eu até quisesse alimentá-lo e ficaria comovida com sua fragilidade e comportamento arredio.
e assim vou tentando dissociar a imagem da emoção.
entre as infindáveis loucuras que a situação me ativa, a mais magnífica: Camus.
para me defender penso em sua beleza e inteligência, seu acidente e genialidade, suas brigas e admirações.
namoro com Camus porque ele disse que a imaginação oferece às pessoas consolação por aquilo que não podem ser e humor por aquilo que efetivamente são.