o primeiro antidepressivo a gente nunca esquece

é assim, de repente, numa quarta-feira qualquer, numa que não é de ramos, que não é de cinzas, que não é de nada, vem um diagnóstico que parece comum. comum aos outros, nunca a nós mesmos: preciso de remédio para me ajudar na jornada.
antidepressivo.

relutei até chegar nesse momento porque minhas explicações para negativa de tratamento iam de um lado para o outro, se debatendo em questões pouco científicas e entupidas de achismos, crendices, esculhambações sociais. me impressiona o que minha mente pode produzir a partir de uma pilha de ignorâncias e afirmações descabidas. logo eu, tão ligada a tudo que a ciência pode provar, tentei desafiá-la com pensamentos coreografados em música errada. dançava um samba ouvindo foxtrote.

saí do consultório na escuridão das nove da noite e parei na farmácia. quando estiquei receita ao rapaz do balcão, fiquei pensando que quando cheguei ao médico ainda era dia, eu ainda não tomava remédio, poderia responder, num tom meio arrogante, a qualquer um que me perguntasse se faço uso de algum medicamento, que não.
quando a noite caiu eu já estava em outro capítulo da história, convencida de que para a saída do poço preciso de uma corda mais forte e segura, mais confiável e firme, do que essa minha tão corroída pelos anos, pelos danos…

e numa quinta-feira qualquer, numa que não é santa, que é oferecida ao acaso à Júpiter, que saúda sem salamaleques Thor, eu engoli o primeiro comprimido.
imaginei-o escorregando pela boca, a descida pela garganta, esôfago, a queda suicida nos ácidos do estômago. penso em sua espatifação, no derretimento de seus componentes e em como entrarão na minha corrente e farão viagem pelo infinito dos limites do meu corpo até chegar em seu destino e combater o que ousa me enfrentar assim de maneira tão sórdida.

agora, quando alguém me olhar com espanto porque estou de pijama na padaria ou saí sem pentear o cabelo ou vesti a roupa do lado do avesso ou me debulho em lágrimas por um motivo qualquer, poderei colocar uma mão na testa e esticar a outra, num ar dramático, lento e teatral e sussurrar: esqueci de tomar meu remédio – porque manter o bom humor também é necessário.

quer comentar? não se acanhe.

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