com a seca do verão chegou para mim a frase ‘o que tem no fundo do rio?’.
todos os dias, ao cruzar a ponte, ao andar pelo lado, ao ver de cima ou no giro do pescoço, a mesma pergunta. uma inquietação nova para a coleção. um sofrimento inexplicável.
saber o que tem no fundo do rio se transformou numa questão filosófica, doída, insistente, impermeável.
pensar sobre o fundo do rio me causou medo e fascínio.
passei os dias quentes assombrada por essa oração que me sugeria aventura numas sinuosas de descobertas.
eu queria falar sobre o fundo do rio.
queria gargalhar e gritar sobre as coisas do fundo do rio. queria sapatear no fundo do rio e arrancar de lá paus, pedras e fins de caminhos.
eu precisava saber do fundo do rio com a mesma intensidade com que o fundo do rio não precisa saber de nada.
éramos, fundo do rio e eu, dois silêncios de correntezas, duas securas de águas transbordantes, duas possibilidades esgotadas.
éramos, eu e fundo do rio, a rotina do lodo, da lama e de uma beleza encravada no avesso, que ninguém nunca não vê.
de tanto perseguir essa ausência, voltei ao divã e lá penso e falo sobre o rio e o seu chão, mesmo sem cita-los.
é preciso ter olhos firmes.