um pouco de idade e um pouco de composição genética me fizeram recorrer a óculos.
fui ao doutor.
‘assim é melhor?’ ‘ou assim?’ ‘e agora, melhorou?’ ‘se eu mudar, melhora ou piora?’ ‘consegue ler a última linha?’ ‘e assim, consegue?’
depois da primeira troca de lentes, me perco totalmente.
tudo fica pior e tudo fica melhor. minha resposta só depende mesmo do tom da voz durante a pergunta.
sou confusa.
toda vez concluo o exame vencida pelo cansaço. não consigo diferenciar lentes. e tenho a impressão que sempre estou a dar uma resposta errada, que entra em conflito com a anterior.
da última vez, peguei a receita e fui à ótica. na escolha da armação, o lance se repetiu. eita coisa difícil essa de escolher esse tipo de breguete.
(e um parênteses aqui para falar dos preços das armações. é quase necessário vender um rim para comprar óculos decentes…)
no dia marcado, fui buscar o novo companheiro, que se resumia em lentes multifocais e 1,75 de um lado, 1,00 de outro.
parece que meu olho esquerdo tem certa preguiça…
quem disse que consegui me adaptar à tranqueira? toda vez que colocava os óculos, parecia que eu estava tendo uma crise de labirintite.
insisti.
voltei ao doutor.
ele mediu tudo, me colocou atrás de todas aquelas lentes, repetiu o questionário de perguntas e deu o veredito: ‘está tudo certo, você só precisa se adaptar’.
não consegui, nem me adaptar nem enxergar direito.
dia desses, na mesa do bar, peguei os óculos do Joa para fazer graça. e a surpresa: consegui ler o cardápio, olhar com clareza o envelope, decifrar as letrinhas do celular sem espremer os olhos ou esticar o braço.
quis surrupia-los, mas Joa não deixou.
encontrei o caminho das pedras (mesmo sem vê-lo): óculos de farmácia, sem receita, sem médico, indústria chinesa, trintão.
cá estou, um grau de cada lado, feliz da vida, a poder ler, escrever e batucar sem dificuldades. tudo bem pertinho.
começo a achar que à distância nada vale ser visto.