tenho algumas dificuldades com a realidade. mantra, já repeti zil vezes. o mundo de verdade me atordoa, me amarra e me amordaça. ou tenta. sou rebelde e enfrento, mas não sem nó na garganta.
mas há contradições. agora, por exemplo, enquanto batuco minha sorte, olho pela janela do quartinho e um céu pintado de branco e uns cinzas está aberto aqui na minha frente. a árvore não sente brisa. flores, que não sei o nome, colorem o arbusto da casa na outra rua. tudo isso é realidade também. não depende de mim e se mostra mesmo que eu não olhe, não queira, não sinta. é coisa superior a qualquer vivente.
a outra que me atrapalha. a que não domino ou que precisaria de mais gênio para amansar. minha cadência não combina com o mundo em que vivo. a inadequação é tanta que só não afirmo que não sou deste planeta porque não tenho vontade de vestir camisa de força e passar o resto dos dias trancafiada num lugar. não fosse isso, gritaria pelos quatro cantos que não tenho que estar aqui, não tenho que passar por isso, que a nave-mãe poderia voltar, me resgatar e me deitar novamente em minha terra. lá, Pasárgada, as pessoas se emocionam com o fim do dia e estendem a mão aos semelhantes; comem quando têm fome e leem poesia em voz alta; as gentilezas nem são notadas e ninguém cede à vulgaridade dos pensamentos exclusivistas.
no lugar que inventei de ser de onde eu vim e para onde vou, ninguém ficaria doente, nem seria magoado por imprudências. e não haveria data para dia das crianças, porque poderíamos todos sempre brincar e sorrir com a alma leve e livre.
agora, uma chuva mansinha começa a cair e ela se parece muito com todas as minhas angústias, apesar de nublar o fim de tarde, conta sobre a realidade, desperta os verdes das gramas, lava os canteiros, escorre pelo asfalto e se refaz num suspiro muito longo, sem palavras.