na ponta do lápis reescrevo os dias. tentativa inútil e incessante de remontar a história.
pequenas notas, palavras soltas, frases perdidas, anotações nas margens, tudo a serviço das memórias que devem ser varridas para fora.
escrever é o jeito de arrancar esses pensamentos flutuantes que formam redemoinho sufocante. e é o paradoxo, fixa para sempre cada palavra que representa meu naufrágio.
percebo na composição do caderno a matéria de que sou feita: o casco que se finge de grosso para ir ultrapassando os dias. este escudo é feito daquelas crostas que o mar forma ou das bolhas da tinta das paredes: parece grosso, resistente, impenetrável, mas é uma casca fina e infiltrada que se dissolve na primeira tentativa.
não quero ultrapassar os dias.
fui cercada de mentiras. as grandes e indecifráveis, as pequenas e infrutíferas, as verdadeiras e necessárias.
a mentira tem tom de voz, tem silêncio, tem olhar duro. mentira tem cor diferente e textura – às vezes macia e confortável, às vezes áspera e cortante.
no caderno dos meus dias há um capítulo inteiro só com meus silêncios, essa forma penosa de combate às fraudes.
há também recursos de argumentação, falas ocas e solitárias, gastação de latim.
a resistência é um vácuo desconfortável.