relógio, tentativa desesperada de sobrevivência, propõe pacto com agenda.
comunhão catastrófica.
a agenda é livre, inanimado com vontades, não obedece combinações, é perversa, falsa. primeiro momento, se coloca boazinha, toda disciplinada e cheia de cores. se o tempo passa rapidinho e numa piscadela dá uma flertada de leve com o relógio, ela se rebela. não cumpre o prometido, embaralha informações, rasga postits, assume ares promíscuos e começa relacionamentos fora do cronograma.
pobre relógio, inútil, em curto, incompreendido, segue solitário em sua jornada de medição. com os objetivos rasgados, não se esforça pela precisão de outros momentos e sente saudade da aurora de sua vida, sua infância querida, que os anos não trazem mais, época em que era uma hora fixa desenhada à Bic em braço de criança ou num plástico dentro do pacote de pipoca. saudades, infância, saudades.
o divórcio litigioso entre relógio e agenda deixa sequelas. tic tropeça no tac e tac se revolta com tic. fazem confusão entre eles, se engalfinham, brigam. descompassados, alteram órbita, entortam ponteiros, enlouquecem engrenagens e modificam a rota.
ela, a agenda, provoca. exige pensão. num jogo louco, defende-se e acusa, a afirmar que assumiu compromissos, que envolveu o calendário, que há datas e horas na jogada.
o relógio toma para si as horas e os dias, a loucura e a vida, o sol e a lua. sente-se devedor, mas não larga os pontos, os ponteiros, o poder.
brigam e discutem e se incriminam.
quando o calor das horas malsãs passa, se olham e se prometem. retomam em juras apaixonadas, reescrevem o futuro e dedicam, mutuamente amor eterno, compreensão, confiança, fidelidade. escrevem linhas retas e tortas, estudam as frações, as meias-horas, os minutos e buscam a harmonia da divisão das tarefas.
é refeito o encontro. e como se fosse o primeiro dia, beijam-se em compromissos que começam às 8 da manhã, para logo mais, às 8:20, estarem em pé de guerra novamente. e o resultado toma os rádios do país: em 20 minutos, tudo pode mudar.
relógio e agenda parecem, mas não foram feitos um para o outro.