“a vida não passa de uma longa perda de tudo que amamos”, Victor Hugo.
todos os dias me despeço. de tudo. o anoitecer é o adeus ao dia, é o aumento da distância da infância, do primeiro amor, dos filhos pequenos.
o anoitecer é dizer mais uma vez, reafirmar de aceno, que aquele sorriso foi embora, que o brilho do olhar virou, que há um tempo a menos.
o anoitecer é encher o copo do presente com mais uma porção de passado – e como cabe passado em minha vida! meus dias são feitos de 96% de passado, o resto é perspectiva de futuro, esperança de chegada, fé em acontecimentos, viradas de mesa. a partir de tudo que vivi, vejo. é como colocar um disco novo na vitrola, sentar na poltrona e ouvi-lo; só consigo fazer isso porque um dia comprei o disco, a poltrona e paguei a conta de luz…
chego para me despedir do dia de hoje com todas essas malas entulhadas de mim mesma e daqueles que me cercam. e me despeço e carrego tudo mesmo assim. porque a vida só acontece a partir de como a lembro. a realidade mora bem do ladinho da ficção das minhas narrativas e de como e o que guardei de cada momento.
as vezes nem sei direito o que me aconteceu e o que colhi como fruto de ilusões. é o torvelino que mistura tudo, joga pra cima e deixa que os pedaços se espalhem pelo chão compostos por massa única que tem metade do corpo feita de verdade e outra de verdade inventada.
o anoitecer é o xis no calendário, o sublinhar na constatação de que não tenho mais esse dia pra viver e que mesmo assim ele insiste em mim. carrego-o comigo feito centopeia que encontra pés pelo caminho e mesmo sem precisar deles, precisa deles e os arrasta para o futuro.
as vezes me demoro numa longa despedida do que amo, porque é o jeito de me manter ao que não mais é ou está; forma de conexão invertida, sofrida e esquizofrênica, de fazer com que o passado seja presente. talvez seja aí, no limite, que eu amanheça e esse despertar me empurre para um novo tempo, uma nova hora, um novo pensamento, mas que desgraçadamente chegam cheios de ontem.
de lascar… lindo!