solidão Arquivo
na última porta do armário naquele lugar que não vejo não alcanço e não sei uma antiga lembrança. preciso das pontas dos pés dos braços estendidos do pescoço contorcido. preciso dos olhos atentos da alma lavada do olho comprido. revejo fitas, cartas, papeis descubro notas, correntes, anéis recupero fotografias, desenhos, pincéis. uma caixa cheia de vida entupida de pequenas mortes um baú de sonhos esquecidos …
quando algum pensamento fica batucando na minha cabeça daquele jeito muito perturbador, que não dá folga e vai me engolindo, vou ao mercado. pego um carrinho e trato de pensar na elaboração de um prato – quanto mais ingredientes melhor. ando pelos corredores procurando o que preciso para a ficção da culinária. primeiro azeite, depois cebola, alho, sal, tomate. e faço o trajeto exatamente na …
escrevo. em algum momento achei que era essa a minha arma para mudar o mundo. ao perceber o tamanho da soberba e o nível de competência, desisti. continuei a escrever. pensei uma vez que era para explicar o mundo. mas compreendi que não tenho verdades absolutas nem conhecimentos suficientes que digam sobre a existência, recuei. ainda assim não parei. escrever me refresca a alma. é …
estou aqui, atormentada com duas frases que escrevi e desgraçadamente não se compõem com nada. olho para dentro e não há rastro em mim que possa servir-lhes de complemento. não avanço em texto menos ainda em ideia. não sei de onde vem esse deserto. nas minhas euforias de viajante conheci Pablo, Jorgito, Inés, Ramon, Anita, Almeida e não conheci ninguém. falei aqui e ali, ouvi …
os olhos parados de Alfonsina me incomodaram. não quero ter seus olhos, nem seu destino, nem sua loucura. não quero sua tristeza em mim, embora saiba que se a reconheço e a entendo assim tão nítida é porque ela já é minha.
o verão passa pela minha janela. me acena, me sufoca, chove e anoitece. dia após dia revela minhas impossibilidades, onde me asfixio e choro. parece que adoecer na época de praia, de liberdades, de sandálias e de vestidinhos floridos é mais angustiante e doloroso. a solidão das tardes quentes piora meu estado geral. e não importa muito o número de visitas que eu receba aqui, …
dia desses contornando a pracinha, vi um maluco a conversar com o busto de Alfredo Andersen. disse-lhe algumas coisinhas, deu-lhe um tapinha camarada no ombro e foi-se embora. achei graça e fiquei curiosa sobre o papo. que será que o cara confessou a Andersen? e como obteve resposta tão significativa que lhe despertou o gesto amigável? as vezes conversar com uma estátua pode ter grande valia… …
eu olho para o cão, quase uma década e meia de vida, e tudo, todos os significados estão ali. seu pelo branco, sua visão gasta, seu sono sem fim, seus olhos tristes, sua pouca empolgação para as coisas do mundo, seu entendimento sobre o que é importante. meu cachorro é o resumo do que somos nós, agora ou depois… mais difícil que perceber companheirinho de …
pode ser que seja este o último dia da vida e eu, confusa, caminhe pela cidade a procurar a saída desta noite escura a testar todas as chaves no que conheço como única fechadura ou me jogue, sem rede, de toda esta altura de onde vivo, sem saber, a grande, irreparável, inconcebível, loucura. pode ser que seja este o último dia da vida e eu, …
numa terça-feira em que o sol queima lá fora, sou janela, quarto de hotel, silêncio, cheiro e comida de hotel. olho lá no horizonte sem prédios e uns azuis se misturam. e acho que eles parecem minhas solidões que se acompanham e se fundem para formar uma massa única que silencia em coro e se multiplica no ar. estranho-me sem sair e correr a cidade …