cara insônia,
venho por meio dessas mal traçadas linhas pedir que você vá embora. mui educadamente solicito sua retirada dessa cama, desse quarto, daquela sala e da outra, da cozinha, do quartinho. dessa casa.
vá! você não é bem vinda aqui, não gosto como se comporta: esse silêncio de pedra, essas sombras na escuridão, essa invasão de pensamentos ruins.
caminhe pelos fusos e faça companhia àqueles que agora precisam estar atentos e fortes para o expediente. ajude a entediada balconista búlgara que boceja sem ver viva alma entrar em sua lojinha. ou dê forças ao médico malaio que pestanejando dobra o plantão. ainda, empreste ânimo ao agricultor australiano que, enxada nas mãos, trata com alguma lombeira do pão de amanhã.
certamente há bilhões no mundo que precisam muito estar acordados agora. dê uma olhada, vague pelo planeta, espie a humanidade.
você será útil para tantos, não precisa ficar aqui a me acompanhar durante a noite.
me cuido sozinha e melhor longe de você.
veja, tenho cama agradavelmente perfumada, quarto quentinho, música suave e bem baixinha; tenho também uma dúzia de sonhos para sonhar, o corpo que pede descanso, os olhos que queimam; fiz minha parte pela melhoria do mundo, trabalhei, fui solidária, lavei a louça e varri a casa. me falta a merecida hora do descanso, do descaso.
acaba sendo muito mesquinho de sua parte querer insistir aqui, nessas conversas que sempre começam quando já é, e ainda não é, dia seguinte.
você bem sabe que posso, a qualquer momento, me levantar e te expulsar, né? basta a decisão de caminhar até a caixa de remédios. uma pílula e o tiro fatal em sua insistência. mas prefiro mil vezes que nossa despedida aconteça com calma, com beleza, com preguiça. quero que você se retire como quem sai de sessão de massagem: passos leves, tranquilidade nos músculos, relax total.
reclamo pelo direito de me decidir pelas madrugadas, se as vivo ou me adormeço… preciso fazer isso sozinha, não aceito mais sua imposição.
reúna tudo que é seu e se esqueça de mim!