carta que nunca mandei

estampei uma fotografia na sala da casa onde moro.
garotos sorridentes, três, sentados sob a sombra de um arbusto no meio da Rua XV. eles estão atrás de uma mesa, como se fosse um guichê, duas cadeiras convidam os transeuntes a sentar e iniciar o atendimento. há uma faixa que explica o negócio: conversamos com qualquer um sobre qualquer coisa.

vi um vídeo no Instagram.
um rapaz sentado atrás de uma mesa com uma parafernália de som. na frente dele, um lugar vazio que fazia convite para quem estivesse passando se sentar. a faixa para explicar seu papel: sente aqui se estiver tendo um dia ruim. ele se propunha a tocar uma música para mudar o estado de espírito da pobre criatura que não estivesse na curva de felicidade naquele momento.

muito tempo atrás vi na tv um cara que segurava a placa quer um abraço? e ficava parado num ponto movimentado de uma cidade qualquer. alguns pedestres paravam e o abraçavam. outros passavam como se aquela fosse a Faria Lima.

tenho na minha cabeça um projeto chamado carta que nunca mandei.
uma proposta que mistura um pouco das situações que citei.
a rua de pedestres. a mesa. eu. outra(s) pessoa(s). a motivação desse encontro é ocupar o espaço público, o tumulto cotidiano, o caos citadino com o silêncio interior, o colchão de sentimentos que nos compõem, a vontade de contar.
eu, sentada num ponto da cidade, conversaria com quem quisesse conversar comigo e com o próprio passado. alguém que tivesse vontade de pedir perdão, de contar uma verdade, de dizer que odeia, de confessar uma traição, de explicar um arrependimento… eu, sentada num ponto da cidade, ouviria, perguntaria, escreveria, documentaria.

a ideia de que conversas possam se transformar no descortinamento de pretéritos que de alguma forma ainda persistem é tão bonita. e quando esta proposta tem relação com o texto, com a escrita, com uma carta, tudo fica ainda mais comovente.

comentei sobre isso com uma amiga que me disse que achava que em Curitiba esse tipo de coisa não decolava. eu acho o contrário. mesmo. em Curitiba é que algo assim daria (dará?) muito certo.
confio nos pedestres.
os pedestres compram bombom e ouvem poesia, fazem cadastro em loja de departamento e dão esmolas, tentam a sorte com o bilhete da loteria e tomam sorvete.

a minha versão de Central do Brasil se transformaria num livro que iria primeiro direto para os seus autores, que fariam com ele o que bem entendessem, desde encaminhar um exemplar ao destinatário, se isso fosse possível, até queimá-lo num ritual para exorcizar o passado.
depois, percorreria escolas numa tentativa de motivar quem tem muito futuro na vida a entender que resolver pendências é uma condição humana, então é melhor fazer isso o quanto antes.
por fim, daria um jeito de fazer uma grande doação para presídios, esses lugares imensamente transbordantes de silêncios e vozes que podem querer contar coisas a alguém ou a ninguém ou a todo mundo e pela inspiração do livro começariam a escrever suas próprias cartas.

também poderia inverter tudo e em vez de me sentar em praça pública a espera de um passante, ir direto a um centro prisional e encontrar lá os remetentes. depois, a distribuição nas escolas e por fim, contar para as pessoas sobre sentimentos e histórias de quem vive, viveu à margem.

a rua, o cárcere, o texto, o tempo.
nessas versões sanfonadas de liberdade mora o humano e, no fundo, é isso que nos interessa.
quem se interessa pelo que, no fundo, nos interessa?

quer comentar? não se acanhe.

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