Sobre Curitiba Arquivo

pedaços de memórias

eu só abri uma porta do armário. só isso. sem dó, sem compaixão, uma multidão pulou em cima de mim. as gentes do meu passado vieram falar comigo e se espalhar pelo chão do meu escritório. caixas, cartas, cartões, cadernos, cadernetas. diários. o que fazer com esses quilômetros de linhas que falam de mim? quantas árvores foram sepultadas para que eu pudesse conservar no amarelado …

pensamentos matinais

tinha umas coisas para fazer muito cedo, como por exemplo, olhar pro teto, me virar sozinha na cama e pensar no futuro. estava meio que fazendo tudo isso junto quando o sol começou a nascer. acho tão lindo dizer que o sol nasce, porque o sol nunca morre. ele se põe. ele desce. ele vai embora. mas não morre. agoniza entre azuis, laranjas, lilases e …

ipês, o final do inverno

tenho essas histórias, que não dizem nada demais. mas são minhas. e gosto de lembrá-las. são enredos de final de inverno, que ficaram para sempre em mim. teve um tempo que o Dé morava numa rua cheia de ipês. rosas. muita coisa era bonita naquela época: as conversas do meu pai e do meu filho movidas a silêncios; a maneira como eu era bem-vinda; os …

enfarte

meu ex-marido teve um enfarte. falei alô e ouvi a frase meu pai teve um enfarte e o silêncio de todos os segundos do tempo – deve ter durado na vida do relógio só o momento de uma puxada de fôlego, mas enquanto o ar invadia os pulmões do meu filho para ele concluir que estava tudo bem, senti meus olhos tremerem, as pernas bambearem. …

sabiá-laranjeira

há obra no prédioda janela vejo homens no telhadoequilibristasum passo, outro passomais um ‘vá por aqui que é melhor’, escutoem cada passo a conquista:sobreviver mais um segundo jogo perigoso fico constrangida por estar sentada no escritório óculos na ponta do narizdedos nas teclascopo d’águacanetinhaseu fingindo que não os vejo eles fingindo que não me veem enquanto os meninos se equilibram no telhado penso que queria …

amizade

o Eduardo me perguntou se perdi amigos durante a pandemia. pior, perdi amigos ao longo da vida. algumas pessoas entraram na minha vida com a potência de mil trovões, habitaram momentos repletos de verdades, transformaram com a força de suas vivências a minha. depois se dispersaram no mundo, a deixar um rastro de saudade. outras me escapuliram porque não soube cultivar a flor. deixei de …

as girafas

não tenho ponto de partida para essa simpatia com as girafas. acho que nasci assim. quando eu era menina e algumas almas faziam coro a gritar no recreio gi-ra-fa, gi-ra-fa eu ficava um pouco triste por causa da vontade de depreciação, mas em meu íntimo sorria quieta. e pensava que se nascesse de novo, gostaria de nascer girafa e apostava que naquele mundo outras iguais …

reminiscências

sempre tinha uma meia ou um cinto de pano ou uma camisa velha no fundo do cesto de vime onde ficavam as roupas para passar.mesmo quando minha mãe, uma tarde por semana, forrava a mesa da lavanderia com um cobertorzinho e um lençol velho, colocava Clara Nunes para girar, e passava a roupa de toda família, esgotando as forças e a paciência, no final do …

à flor da pele

tenho marcas. marcas no corpo. não só as dos anos, das emoções, das intensidades. tenho marcas por conta de patologias. várias, variadas patologias. uma vez, um médico me disse que eu era um modelo para estudo de caso interessante. tese. inscrições em congressos. artigos científicos. acumulo reações alérgicas. tantas, que às vezes acho que todas são uma só e que ela reage ao ar que …

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