Sobre Curitiba Arquivo
naquele tempo em que era possível esticar a mão e encostar no mundo ao abrir a porta de casa, eu não sabia sentir saudade.qualquer alteração nas faculdades me fazia agarrar o telefone e tratar de explicar minha condição. se a vontade era de andar solta pela XV, enfiava o tênis e me largava na caminhada. a Bahia era logo ali e eu arrumava, na ponta …
estou quieta aqui. há silêncio. não escrevo e não leio. fico desenhando.desenhando. desenhando. desenhando. são traços infantis, sem técnica e sem compromisso. gosto da caneta escorregando no papel. mais ainda de repetir folhinhas dessa minha floresta imaginária que vai se compondo num jeito infinito que de repente encontra a beiradinha do papel e estanca. despretensiosa, passo horas debruçada nessa nova onda que não precisa obedecer …
todos esses dias azuis, esse recorde de dourado, esse tempo de estio… a corrente que vai emendando um dia no outro me faz visitar os dias de rodízio, as noites de esperança de ouvir dança nos canos, as saudades de uma abundância, fácil e frívola de outros tempos. falta água. falta paciência. mais falta faz o escrúpulo de, às vezes, intimamente, bem quietinha, pensar que …
não importa o que aconteça comigo, por onde eu ande, o que faça. eu sou estrangeira. é uma condição de nascimento. está impresso em mim este traço de inadequação. o que eu faço para o bom convívio é tentar não perturbar muito. me esforço para me misturar ao meio, reprimo as maneiras desajustadas, a fala estridente, a vontade permanente de contestação – o exercício do …
sem pudores, peguei papel, canetinha e risquei a folha. pretensão? a de deixar a cabeça livre do corriqueiro.não tenho habilidade, menos ainda conhecimento técnico sobre artes gráficas. logo, expectativa alguma numa atividade assim. é uma novidade fazer uma coisa sem regra. por causa da minha inexperiência nesse tipo de aventura, ignorei padrões, desprezei método, deixei a mão solta e trêmula. só me revezei entre três …
cansei de limpar a casa espanar aspirar secar puxar empurrar dobrar lavar todos esses verbos me cansam e esse cotidiano entupido de obrigação e culpa que consome meu tempo e fica me sussurrando no ouvido frases idiotas enquanto eu escuto música para disfarçar o tédio e tentar a ruptura com a vida que eu achava normal acaba aqui como acabam também as pontuações que separam …
dormi acompanhada de fantasmas de várias sortes. acordei cheia de ideias equivocadas, planos insustentáveis de conversas, impulsos fantasiosos. sabe-se lá quantas coisas me assombraram na madrugada para despencar num amanhecer que tinha promessas catastróficas. faltava pão.com todos os medos e adornos me coloquei em marcha. respirar este sol de outono foi como entupir os pulmões de flores: primeiro parece bom, depois o pólen atrapalha e …
o saca-rolhas quebrou. decerto cansou de se afundar, rodopiar e cuspir cortiça seca.isso não é um grande drama, mas confesso minha decepção. imaginava eterna sua vida quase suicida de provocar redemoinhos mínimos para enxurradas douradas, púrpuras, róseas. há dias não consigo engatar nova leitura. nem ouvir música. nem ler jornal. navego sem rumo pela internet. um timão solto que me fez descobrir que os átomos …
estava com medo que a samambaia pegasse a mesma doença que a amiga do lado, então resolvi verificar como estavam as coisas em cima da estante de livros (duas plantas: a cabeça tomada pelo coronavírus foi logo pensando que não há tanto espaço na varanda para um socorro coletivo…). infelizmente minha vizinha tinha uma escada para me emprestar. e me emprestou.início da minha derrota. um …
acender uma vela depilar as pernas arrumar a velha caixa de lembranças deixar que o incenso queime almoço esvaziar uma taça catalogar os livros entender sobre pontos cardeais regar as plantas refazer as contas, duas pedras de gelo percorrer fotografias antigas os pulmões, o imposto de renda, a internet e a conta de luz, abrir o boleto, trancar a porta, telefonar para mãe, um capítulo …