pode ser que eu esteja enganada, até é bem provável se considerar minha crônica burrice a respeito de tudo que anda, voa ou se arrasta, mas tenho a impressão, desde sábado à noite, que um vizinho me espia.
o lance começou quando eu lia na poltrona da sala. era noite e por conta de um ventinho perturbador levantei para fechar a janela. como de costume não puxei o vidro de uma vez só, dei uma olhadinha em volta. na janela do que deve ser um oitavo ou nono andar de um prédio vizinho, a silhueta de um homem.
o prédio em questão não é colado ao meu, os terrenos não são limítrofes, a construção do de cá é separada pela a do de lá por mais ou menos uns 50 metros em linha reta, mais os de altura, eu no quinto e ele no oitavo ou nono.
pois bem, sem fazer sinal nem cumprimento, porque achei que não era o caso, me defendi do vento e voltei à poltrona. retomei a leitura, os parágrafos me prenderam por umas 20 páginas, levantei os olhos e lá estava a sombra do homem.
não sei exatamente qual é a paisagem que ele bem mais alto e em outro ângulo consegue de lá, mas parecia voltado para minha direção, ou para direção do meu prédio.
sem mais, guardei página, me levantei, apaguei as luzes e fui dormir.
noite seguinte, mesmo ritual pros dois.
fiquei um pouco incomodada. pensei em trocar de lugar, mas essa ideia me perturbou também – ora!, tenho eu que sair da minha poltrona preferida porque acho que um vizinho me espia a leitura?
não pude conceber fechar as cortinas, porque nunca posso conceber fechar as cortinas, me sinto sufocada, engasgada, preocupada.
segui.
hoje, noite das últimas páginas do comovente “O que amar quer dizer” estava muito concentrada e emocionada e viajei num fôlego só pelo capítulo final.
não lembrei do vizinho, esqueci de reparar se ele estava em sua vigília. foi só na frase final, naquele momento em que a gente fecha o livro e suspira a solidão de se despedir do autor, que levantei os olhos e o vi quieto e debruçado.
morri de raiva! me espionando ou só tomando a fresca, ele me retirou aquele sentimento de melancolia tão única que se vive no final de uma obra.
fragilíssima que sou, deixei que o respeito e a gratidão por Mathieu Lindon fossem trocados por esse distúrbio social de ser observado (ou se achar observado) e de observar, porque é certo, se não o olhasse, ele não existiria.
fecho as cortinas, nem que volte para o divã!