escrevi um dicionário

há muitas primaveras ganhei uma agenda telefônica do tipo bem grande, caberiam mais nomes e números do que gente que conheço.
imediatamente a corrompi a uma função particular: anotar explicações, frases, conceitos que encontro em livros, artigos e outros que leio.

um exemplo. na letra S, há especificações para silêncio, sintomas, saúde, sofrer et cetera.
um exemplo melhor, entre as anotações da letra S está:
“SOLIDÃO: ‘A gente sabe instintivamente que a solidão tem vantagens que devem ser mais profundamente satisfatórias do que outras condições, mas é difícil mesmo assim’ – James Salter, Um esporte e um passatempo, pág. 129”.

como este há muitos outros apontamentos. às vezes são dois ou três parágrafos, às vezes uma palavra correspondente.
trata-se de um álbum de retratos literários, uma composição que tem Adorno e Maiakovski, Duras e Zambra, Ruffato e Machado, Trevisan e Plath. tem de tudo. tem até citação de livros que não gostei, mas que por um parágrafo, por um momento, por um instantinho me ajudaram a traduzir alguma coisa de forma bonita ou precisa ou retumbante ou tímida ou desigual ou surpreendente.

o que acontece é que inventei este dicionário que guardo não como relíquia, mas como uma espécie de memória, de fichamento, de inspiração para textos, sei lá, guardo-o de forma importante, com certa cerimônia. vez ou outra consulto-o por alguma razão específica ou só como oráculo do dia.
hoje, abri aleatoriamente. a mensagem:
“IDENTIDADE: ‘Uma pessoa nunca sabe quem é. São os outros que dizem a ela quem e o que ela é. Explicam tantas vezes quem somos e de formas tão diferentes, que no final não se sabe absolutamente quem se é’ – Enrique Vila-Matas, Ar de Dylan, pág. 155)”.

o chocante disso, o que me faz escrever este texto é que enquanto tomava café e abri o Instagram, a primeira coisa que li: “Me gusta sentirme extranjero incluso en mi propio país”, Enrique Vila-Matas é o dono das aspas.

o mesmo assunto, o mesmo autor, um recorte de tempo que deve girar em torno de oito anos e a mesma mensagem de sempre.
posso escrever um dicionário, mas não consigo encontrar um lugar confortável dentro de mim para saber quem sou, por que sou, como sou…
busca vã.
sou um disco riscado. com o melhor dos dicionários…

quer comentar? não se acanhe.

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