eu, casca de ferida

Lembro pouco dos meus dias passados. Acho que a memória coloca barreiras pra gente poder continuar. É empresa complicada ficar carregando pra cima e pra baixo os dias de felicidade e é também difícil percorrer as avenidas da vida com o peso das mágoas cotidianas.
Tenho acontecimentos que, por alguma razão, ficaram na vitrine da cabeça e volta e meia dou uma olhadinha neles.
 
Ontem à noite, antes de pegar no sono, um dos pedacinhos que me trouxeram até aqui se exibiu pra mim.
Já desisti de entender as conexões que a cabeça da gente faz. Mas nesse lance de um pensamento levar pro outro e esse outro conduzir para um terceiro, eu cheguei a um dia em que deveria ter uns oito anos.
 
 
Eu fazia ballet três vezes por semana. Tudo nos conformes: sapatilhas, meia rosa, collant, rede para o cabelo em coque, gestos delicados e passada suave. Menina esbelta, ágil, disciplinada e flexível, tinha quase tudo pra ser bailarina. Me faltava o interesse. E ele me faltava tanto que eu nem decorar demi-pliê conseguia. Minha cabeça sempre estava no álbum de figurinhas ou no cachorro quente da cantina ou no jogo de caçador do recreio ou no papel de carta da coleção ou em qualquer outra coisa que não se relacionasse ou misturasse às aulas para meninas bem comportadas e dotadas daquele ar etéreo que sempre me faltou…
 
Pois bem, num final de tarde, entre a tentativa mal sucedida de uma meia-ponta e o fracasso em um tendu, eu espiava pelo vidro da porta os guris do judô. Por algum motivo eles não estavam em aula e brincavam, corriam, investiam em todo tipo de algazarra, conseguindo até fazer bola com a faixa-patente amarela para um futebolzinho improvisado.
Fingi vontade de banheiro e saí da sala. Como teco-teco na bola de gude era o meu viver, logo me meti na fuzarca dos meninos e, feliz da vida, dividia corre-corre e gritaria. Vez ou outra uma espiadela na porta de vidro para, pelo reflexo do espelho, sacar em que momento da aula estavam as gurias flutuantes.
 
Quando o tempo regulamentar se aproximava do final, era hora de voltar da gazeta. Com pressa, não calculei bem e não pensei na dificuldade que seria frear uma sapatilha em alta velocidade e me espatifei na porta de vidro. Cacos para todos os lados – cacos meus e cacos da porta. Por sorte, fiz minha entrada triunfante de joelhos e foram eles os premiados no acidente. Levei um milhão de pontos que demoraram a fechar e mais ainda a me devolver a liberdade primeira de ir e vir.


Toda vez que lembro desse episódio, vou às gargalhadas quando penso numa menina no pronto socorro do Pequeno Príncipe, que, horrorizada com meu estado disparou: “Guria, como você rasgou a sua meia-calça?”.


“Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem” (…)
 

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