outro nível de vínculo

a cada dia que passa meus cabelos ficam mais pálidos. também perdem vigor e volume e quase não faz sentido estarem a cobrir as costas. estola de bicho quase morto.

tão difícil envelhecer. tão bom envelhecer.

crise.

ontem ouvi da mocinha da clínica de estética sobre todos os meus defeitos físicos. aqueles que ela quer combater com lasers, botox, ácidos e uma infinidade de invenções caras para transformar calhambeque em esportivo.

achei até engraçado. as marcas do rosto, as cicatrizes na pele, os vincos pelo corpo são, como disse o humorista, a luta. passar borracha na casca é bem parecido com querer apagar a história.

ninguém gosta de perder o brilho, ver o tempo se sobrepondo ao corpo e cantando em voz alta e poderosa o quanto ele é mais forte. mas transformar isso num combate sem reflexões, acho estranho.

há algumas causas que me fazem entrar na peleja: tinjo os fios brancos, uso anti-rugas, passo protetor solar. e pronto. tá bom assim. mais que isso é perder o tempo que já se mostra escasso e gastar grana que não tenho.

na conversa com a mocinha, questionei sobre a bagagem que cada um traz. sobre tudo que os sinais dizem, sobre as assinaturas que são desenhadas no rosto, feito a palma da mão ao contrário. uma fala do futuro, outra do passado. ela me disse que isso não tem importância, o fundamental é chorar e sorrir sem marcar. conceito botox.

já que o assunto era o tempo, não o curitibano mas o da vida, quis conversar também sobre a finitude, a aproximação da morte, o entendimento sobre esse assunto e o que ele significa pra cada um. a resposta: “não vamos falar nisso que dá azar, mas se você usar esse creme todas as noites, em três meses vai se sentir dez anos mais nova.”

fiquei tão perturbada com tudo que não consegui dormir.

por que que algumas coisas parecem tão difíceis de serem tratadas. se até disfarçar a certidão de nascimento é possível, qual é o motivo que faz com que não seja real tratar de coisas naturais? da última vez que quis conversar sobre o tema, recebi um e-mail a dizer que eu deveria me tratar, que estava deprimida, triste, doente, que deveria procurar assunto mais alegre… falar da morte é coisa de gente deprimida? por que?

como já disse em outra não-oportunidade, aprender envelhecer, se preparar para a morte, ser consciente da finitude deveriam ser assuntos obrigatórios nas rodas, nas escolas, nos meios. sem nenhum tipo de tabu (detesto essa palavra!) ou depressão, só tratados com a mesma naturalidade com que falamos da profissão, da infância, do filho, do futebol.

talvez a vida fosse mais ampla, os sonhos mais possíveis e os problemas menores se a consciência do tempo e suas marcas estivessem para nós com a mesma simplicidade dos outros assuntos que nos compõem.

de uma forma ou de outra, estamos todos a tentar enganar os ponteiros e a acreditar que temos ainda muito tempo. e é assim que a mocinha da clínica de estética ganha o seu pão de todos os dias, vendendo a ilusão de despistar os anos do passado e do futuro.

 

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