um pouco encantado, um pouco real


Existe, está no mapa, tem rádio, prefeito, igreja, bordel, escola, restaurante. Tem ruas, praça, calçada e até semáforo – um só, mas está lá: atenção, pare, siga. Tem lojas, farmácia, peixaria e mercado. Tem música, lendas, apelidos e carnaval. Tem água, barcos, porto, trilhos, árvores e flores.
Tudo muito tátil, muito ao alcance das mãos, dos olhos. Mas a léguas do entendimento possível em outros sítios.
Há um ritmo. E ele acaba por ditar tudo aquilo que não se explica. No compasso de seus ventos, de sua gente, de seu comércio, de seus sinos a vida se instala e mostra quais são os intervalos entre uma atividade e outra.

O primeiro galo canta ainda quando o dia não rompeu. Mas esse galo não mora lá, ele canta a 80 quilômetros de distância, o som de seu cacarejo viaja devagar, desce ladeiras, escorrega caminhos, quebra veredas, banha-se em rios, faz arruaça pelas vizinhanças e quando chega na cidade para acordar os pares, o relógio marca nove horas da manhã. Lá os galos se acordam e acordam os outros a partir das nove da matina, madrugada. É quando o dia começa, quando o primeiro cachorro se espreguiça, quando as flores do dia se abrem e os passarinhos saem dos ninhos.
As nove da manhã o primeiro homem, acordado pelo primeiro galo local, corta a primeira lenha para o primeiro café. O sol começa a subir. E sua primeira xícara desce preguiçosa, chacoalha o metabolismo em câmera lenta para que o trabalho comece: olhos na baía, coceira pelo corpo dormente, preguiça.

Os cachorros se arrastam pelo caminho para atravessar a rua e achar o ponto de parada e soneca do dia. Os passarinhos vêm, cantam devagar, nota por nota, pios vadios, sem alvoroço.

Todo o trabalho dos homens, das mulheres, do comércio, das casas, em todos os lugares e a qualquer tempo é slow, vagaroso, moroso. Uns chamam de preguiça outros de vida besta mas eles não têm urgências – o grande acontecimento é a morte e ninguém se precipita pra ela.

A igreja, a música e a televisão emburrecem. A natureza faz contra-ponto e como ela também procrastina, ensina a viver como os galos, como o sol, como a passarinhada e mantém um povo inteirinho dia após dia, chuva após chuva em cadência sem horizonte, sem motor, sem progresso.
A pressa não existe, Inês já é morta, a vida segue de qualquer maneira e amanhã o canto do galo viajará como luz de estrela que não existe mais para recomeçar o dia, reabrir as janelas e continuar o eterno domingo.

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