meu pé de marmelo

tinha um marmeleiro no meu quintal.
quando eu digo meu quintal, não significa absolutamente nada além de um espaço que emoldura a janela da cozinha da casa. a propriedade é do vizinho.
além de ser do vizinho é grande e verde.
além de ser do vizinho, grande e verde, é domesticamente selvagem.

quando mudei para essa casa, havia galinhas. e um galo.
foi por causa dessa família que deixei de comer aves, com um escorregão ou outro por causa da alheira, mas esta é outra receita.

deixei de comer aves por uma ação em massa do galinheiro.
o galo cantava tão bonito antes do sol chegar e ouvi-lo me trazia uma sensação de acolhimento, de vida caipira, simples e gostosa.
ouvir aquele galo era parecido com estar na casa da minha vó quando eu tinha 1,30m.

depois foram as galinhas.
fiz amizade jogando coisas para elas comerem. abria a janela com a mão cheia de milho, soltava beijinhos no ar, elas vinham para a sombra do marmeleiro e ciscavam.

teve um dia que eu estava cozinhando e ouvindo Buena Vista Social Club. uma delas veio e ficou pertinho da janela.
não dei comida, apenas a cumprimentei.
a música parou e ela foi embora.
coloquei outra música e ela desprezou.
voltei ao Buena Vista e ela voltou.
fiz este teste uma vintena de vezes. a galinha tinha uma alma cubana. ela realmente gostava do grupo.

esta revelação tornou impossível voltar a comer qualquer bicho que tem asas. a exceção, envergonhada, já contei.
penso que as aves têm um ouvido sensível e predileções musicais. não dá para tratar delas dentro do prato.

as galinhas e o galo desapareceram no inverno. um dia, abri a janela e não tinha mais ninguém.

o pé de marmelo era tão próximo da casa, que se me esforçasse um pouco conseguiria colher a fruta.
nunca fiz isso.
apenas observava o seu ciclo obediente às estações do ano.
eu o conheci nas versões mais íntimas e diversas: pelado, verdinho, florido, grávido, cheio de frutos.
e morto.

teve um dia que ele não estava mais lá.
foi como aconteceu com as galinhas, num estalar de dedos, o fim.

a poda do marmeleiro confirma a notícia que havia recebido há alguns meses: o terreno foi vendido.

nunca mais marmelos, nunca mais galinhas, nunca mais o clima interiorano. parece que o que era um quintal entulhado de vida e possibilidades vai se tornar uma área gourmet, cheia de cimentos, águas artificiais e gentes comendo frango assado aos domingos.

quer comentar? não se acanhe.

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