numa folha qualquer

Tirei da gaiolinha lápis, gizes, tintas. Todas as cores libertadas. E todas as disposições para usá-las.
Saquei as algemas do bloquinho de canson que guardo há muito e que agora é manchado pela pátina do tempo, amarelado pelos anos de gaveta.
Abri bem as janelas, escancarei as cortinas, afastei os móveis. Com os ventos a circular, espalhei material em cima da mesa. Escolhi música de transporte. Arregacei as mangas, puxei ar e encarei o papel.
Tinha vontade imensa de pintar, fazer graça no papel, deixar registrado em desenho o que viesse à minha cabeça.
E o que veio? Nada. Acho que se fechasse os olhos e me concentrasse, chegaria aquele estágio da meditação onde é possível flutuar. Nenhum pensamento, nenhuma ideia, nenhuma figura. Cabeça anulada.
Não desisti. Segurei firme o azul e não dei comando. Pensei que eu pudesse ser um daqueles gênios que só soltam a pena e tudo vai se compondo feito mágica, a reinventar técnicas e produzir maravilhas.
Não, não sou. O papel continuou do mesmo jeito que anos atrás, quando o tranquei na gaveta: virgem e mudo.
Gargalhei de mim mesma. O que queria eu agora, às vésperas de completar 100 anos? Depois de velha me descobrir como artista das plásticas? Criar traços dignos de paredes elegantes? E, ainda por cima, com esses parcos recursos?
Não tive dúvidas, recolhi tudo. O canson voltou pra gaveta, tão pálido quanto antes; agora terá, por sua natureza modificada pelo tempo, utilidade de tapete de cartas que contem notícias antigas, já pisadas e vividas.
As cores todas voltaram para gaiolinha e de lá só sairão para fazer pequenos enfeitinhos nos meus diários; ninguém vê, não passo vergonha.
 

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