cansei de limpar a casa espanar aspirar secar puxar empurrar dobrar lavar todos esses verbos me cansam e esse cotidiano entupido de obrigação e culpa que consome meu tempo e fica me sussurrando no ouvido frases idiotas enquanto eu escuto música para disfarçar o tédio e tentar a ruptura com a vida que eu achava normal acaba aqui como acabam também as pontuações que separam uma sentença da outra porque não é possível começar um novo parágrafo se eu estou há quase dois meses trancada em casa num ciclo interminável que me obriga a cozinhar lavar e varrer dia e noite e me obriga a ler as notícias e chorar diante das notícias e não querer morrer e querer morrer e todos os dias quando passo o café pensar que hoje pode ser um dia diferente mesmo sabendo que ele não será mesmo sabendo que tudo vai se repetir dentro dessa espiral porque tudo até hoje desde o primeiro dia ficou se repetindo e não há como mudar agora logo agora que estou trancada nessa caverna branca de paredes que me espremem e ao mesmo tempo tenho que agradecer por tê-las e tentar não ser uma pessoa ruim que não enxerga os problemas alheios e reclama da própria sorte mesmo tendo uma cama gostosa e um chuveiro quentinho ainda que me falte dinheiro no banco e meus peitos estejam caindo e que me tenha chegado a consciência de que minha juventude ficou para trás e eu fiz pouca coisa com ela e agora nessa época mal tenho frutos para colher apesar de tudo isso eu tenho que me sentir agradecida e eu não tenho vontade nenhuma de gratidão porque quem sofre não pode agradecer mesmo que o mal não seja tão grande porque um mal é sempre um mal e não há motivo nenhum para glorifica-lo e coloca-lo num lugar como se fosse uma coisa boa porque não é
