tem um prédio aqui perto de casa. é alto, mas está numa distância regulamentar, não me atrapalha a vista, nem o sol e nem o vento. elegante, simples, com janelões e sacadas que sugerem inveja.
dia desses um apartamento foi posto à venda. nem me animei a sonhar, porque sei o meu tamanho. mas acompanhei quando a placa foi retirada e alguns dias depois quando as janelas foram cobertas com kraft para a inevitável reforma.
há algumas rotinas que consigo seguir, um dos andares tem uma TV tão grande que acho que veio desmontada numa caixa de geladeira e foi construída, circuito por circuito, na sala. sei que assistem o Jornal Nacional, porque da minha cozinha, identifico o William Bonner.
em outro andar, toda efeméride é levada a sério. páscoa, natal, futebol, dia das crianças, aniversários, tudo se estampa e se revela para o público em decorações que devem estar na pauta da reunião de condomínio.
ali também mora algum insone, que passa as madrugas como se fossem manhãs de domingo. movimento entre os cômodos, atividades, organizações.
o que mais se parece comigo tem muitas plantas disponíveis à vista. tentativa de recriar um quintalzinho na varanda. se morasse lá certamente também faria isso.
mas o meu andar preferido é o primeiro. todas as tardes me perco em pensamentos ao observar um senhor que se senta confortavelmente na sacada e aprecia o movimento. acho que ele não vê o movimento da rua, porque não acontece muita coisa por ali, está atento às modificações da vida, do céu, do sol, do mundo. testemunha os finais de tarde, o chegar da noite – não sei se faz relações entre os fenômenos da Terra com os ciclos de sua vida, gosto de pensar que sim. as vezes uma senhora se senta ao seu lado, não se dizem, mas acho que conversam pelos silêncios; talvez passe um passarinho ou uma borboleta para levar mensagem de um pro outro. não há tristeza no que vejo, só uma placidez contemplativa e bonita de quem sabe sentar e olhar para o tempo.
obviamente aquele senhor não faz ideia sobre isso, mas todos os dias me inspira, acalma e me dá aulas de reflexão: observação do mundo, inteligência, solidão, aproveitamento do tempo. é provável que nunca troquemos uma palavra, mesmo assim lhe sou grata, muito grata; os seus começos de noite me melhoram a alma.
e se aquele senhor morrer?
se ele morrer, fecha-se o ciclo de minha aprendizagem com ele.
aprender a morrer é lição excelente, todo mundo deveria ter aulas sobre vida e morte, tempo e sonhos, permanência e finitude.
e ele? ele aprende contigo? ou seja: ele ‘vê’ você?…
eu não existo, Eduardo. sou olhos imperceptíveis, mosquinha que espia sem ser notada…
Mitigue-se menos, La Sydor: não existem moscas de 1,80m => unifique-se! Vamos fazer uma vaquinha e comprar um espelho enorme pra vc, lá na Ballaika, daqueles antigos, que mostram até o futuro…
…é. Mas eu penso que aquele senhor é uma estrela: você vê o brilho quando quer (bastando olhar para lá), mas ele há muito já se foi…
por que que você pensa que ele já se foi? por que o coloca como estrela morta? não entendi…
Pq viver eh uma das coisas mais relativas que possam existir. Tem GNT q está vivo, mas não vive, apenas passa, jamais passarinho…aquele senhor foi uma criação sua, minha interpretação eh vaga, relativa e só minha…
mas uma pessoa que tem a erudição de todas as tardes sentar e olhar o sol se por, eu acho que sabe, e muito, viver…
Tem muita gente que vem pro mundo pra cantar. Mas poucos cantam musicas importantes, como ela. Ela, que uma vez trouxe a música mais importante da MPB: “O Amor”, poema de Mayakoski musicado por Caetano. Agora e aqui, de novo. Porque toda hora, é hora de Vander Lee. Mesmo assim, valeu. Bye.
Quando aconteceu?
Não sei.
“…a pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.”
Rubem Braga