desencanar

        A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual.

– Clarice Lispector

estou no meio de uma reforma.
desenvolvo habilidades conforme a necessidade do dia e vou, em gerúndio, aprendendo sobre assuntos variados.

até ontem eu imaginava que a água escorregava pela pia porque eu rosqueava a torneira num sentido – e parava pelo meu movimento contrário. nada mais existia entre o meu toque e a água.
agora entendo um pouco sobre encanamento e penso com mais propriedade na expressão ‘desencanar’.

fazer uma reforma envolve muita atenção em algumas coisas e em pontos específicos é preciso suavizar a mão de ferro, vestir luva de pelica e deixar que o barco navegue tranquilo no mar de cimento antes que ele endureça e acabe com o passeio.

é um exercício interessante descobrir conexão por conexão como a vida vai se formando atrás das paredes.
recebi o laudo do empreiteiro com a notícia de que os canos de ferro ficariam lá, inúteis, amputados, para sempre mortos dentro das paredes, enquanto outros mais integrados com a modernidade dos dias nasceriam para assumir suas funções.
os vi entre tijolos e cimento, mudos, soterrados, com o destino finalizado, cadáveres sepultados onde sempre viveram. me deu um nó de angústia. argumentei uma outra coisa, mas achei que o melhor era concordar com o chefe da obra e estancar logo de uma vez o assunto.

mas não me parece certo passar uma vida inteira cumprindo diariamente suas funções para que de repente haja a rispidez do corte de serventia. pior, sem nem ao menos um agradecimento pelas décadas de água rolante.
também não consegui encontrar solução para o caso. faria o quê? um funeral para os canos e em vez de deixa-los descansar no habitat natural os mandaria sabe-se lá como, para sabe-se lá qual lugar?
desencanei.

me custa um pouco de saúde, um tanto de paciência, uma detonada no tempo, mas controlo a ansiedade. e vou seguindo, procurando ser uma fúria de jato d’água represada em canos que se acotovelam para me dar passagem, liberdade.

a única coisa que não consigo amansar é esse mal estar pela Ana, minha vizinha de baixo, que apesar de não ter nada com isso, é quem mais sofre com a batucada dos pedreiros e o demorado velório dos canos de ferro.
não posso dizer para ela desencanar porque para isso seria preciso uma dose de cara de pau que não tenho. singela, mesmo sabendo que isso não ajuda muito, me desculpo, a prometer sossego de canos aposentados assim que tudo isso acabe.

quer comentar? não se acanhe.

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