do que vai e do que fica

recebi recado do Sérgio Silva: “Adri morreu o Eduardo Galeano. Minhas veias estão abertas e sangrando. Estou esperando um texto daqueles que só você sabe fazer. Beijos”

Sergio,

a vida nos castiga. parece que as salmouras que derramamos todos os dias não são suficientes. ou que as chicotadas se apressam em castigar nossos pecados, até aqueles que não cometemos. sofremos. e, impressão, cada dia sofremos mais, em quantidade e em qualidade.

nossos homens estão a ir embora, um a um, numa marcha marcada, cadenciada, estranha e repetitiva. nossos homens estão a nos deixar órfãos, sozinhos, como navegadores que por muito tempo foram guiados por poderosos faróis que de repente se apagaram. sabemos dos perigos do mar, das direções e das rochas duras e tóxicas, mas precisamos dos faróis. nossos homens estão a nos transformar em viúvas com olhos parados no espanto e na surpresa da solidão.

você me conta das suas veias abertas e sangrentas. e nessa frase reconheço todo o desespero da perda, de todas as perdas.

sabemos da delicadeza, sensibilidade, sabedoria de outros que passaram em nossas vidas e nos deixaram. eles nos tocaram com o condão que transforma e nos abre, mente, coração e veias, para assuntos que não conhecíamos antes, depois sumiram no mundo e somos todos viúvas, navegadores, órfãos.

mas há nessa perda definitiva, Sergio, o reconhecimento do nosso presente: o testamento que nos colocou na lista dos que recebem herança. e esse é o outro lado da moeda, porque você é, Sérgio, composto por Galeano, por Rubem, por Márquez, por Barros, por Sílvio. é você, Sergio, somos nós, os donos da herança, do legado, dos livros e pensamentos que os grandes trataram de ter e fazer por nós, para melhorar nossas vidas.

e se hoje choramos e lamentamos e sangramos é só porque também podemos reconhecer o privilégio de entrar nesse caminho as vezes torto, as vezes injusto, as vezes indecifrável, da troca humana.

aqui, do nosso cais, nos despedimos dos nossos homens e, ao mesmo tempo, os recebemos de volta em tudo aquilo que eles transformaram dentro de nós.

sim, somos viúvas, navegadores e órfãos. mas somos também, e principalmente, Galeanos, Rubens, Márquez, Barros, Sílvios.

quer comentar? não se acanhe.

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