na desordem do armário embutido

quando percebi que parte de um biquíni se abraçava indecentemente a um pé solitário de meia e uma saia de verão se insinuava ao paletó, soou o alarme de emergência: hora de arrumar o armário. caí em desespero. chorei lágrimas de linho, solucei algodão e me revirei em malhas: doze portas, oito gavetas, dois calceiros, quatro cabideiros e uma população confusa, que importou e exportou, trocou tantas particularidades que cada peça perdeu a identidade.

gritei para que as partes daquela imensa teia voltassem para os seus lugares. me sorriram com escárnio, debocharam de minhas palavras e ameaçaram utilizar os cachecóis para me amarrar e se rebelar. início de revolução.

o roupeiro, impávido colosso, manteve seu silêncio de mil anos, a oferecer abrigo e proteção para cada blusa, cada calça, cada camiseta. nada disse e mesmo assim me ameaçou, poderia fechar suas portas, erguer fortaleza e oferecer eterna resistência. bastava uma virada de chave para o que hoje é incômodo voltasse à paz de outros tempos. a mensagem era clara: fecho as portas e não serás mais perturbada e também não perturbarás mais.

sou dirigente democrática, gosto de ouvir as vozes. entrego ao povo o poder e a soberania das decisões e, humilde, obedeço. pois assim fiz e percebi que no meu reino não havia a democracia na essência, aquela coisa primária que garante que todos têm direitos iguais. o vestido azul estava tão escondido que já não conseguia mais ser votado para os dias de sol; a camisa branca perdeu o poder de fala; a calça jeans foi exilada na prateleira de chapéus; e a saia cinza, cadê?, ninguém sabe, ninguém viu.

como quem combate missão de vida ou morte, arranquei os podres poderes do guarda-roupa. tirei cada ser ali de dentro, um por um, sem escolher credo, raça, preferência política. todos entregues à cama, numa orgia de tecidos e cores, festa de texturas.

sozinho, num eco escuro, o armário não representava mais prisão e depois de umas baforadas de essência de cravo e canela, se transformou em lar. pousada comovente para todo tipo de roupa, a entender que todos são iguais em direito, não em qualidade. e aceitou que há espaços demarcados para todo tipo de situação, se a roupa é de festa, não convém se amarrotar no meio das malhas de ginástica; se o tempo é de frio, as coisas de praia podem muito bem ficar empilhadinhas numa distância segura das pressas cotidianas.

mas na vida tudo se equilibra numa realidade estranha. arruma-se de um lado para que o outro comece a incomodar. e foi assim que o caos em cima da cama tomou forma estranha. uma vez fora do armário, as roupas quiseram saber das liberdades e reuniram-se numa massa única e gritaram com tanta força e florzinhas e bolinhas e xadrezes e listras convocaram aquela que seria a única salvadora daquele momento tão grandioso, tão esperado, de emancipação: chamaram pela preguiça. ela veio, e como era de costume, obedeceu.

agora, há uma pilha sem identificação em cima da cama e uma apatia de bloquear exército inteiro. não consigo resolver a questão. a preguiça não me deixa organizar as roupas, o armário se encheu de pudores e não quer recebê-las sem ordem, a cama se refastela com tanta companhia.

pergunto, há alguma amiga na plateia capaz de vir aqui, organizar o movimento, orientar o carnaval e colocar ordem no terreiro? preciso de ajuda.

2 Comentários

  1. cristina

quer comentar? não se acanhe.

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