paisagem da janela

por sorte moro em um lugar com muitas janelas e delas posso observar os mais diferentes acontecimentos.

daqui vejo gatos que se enfrentam sem a força física. ocupam a voz para impor o vigor em duelos que duram muito tempo. estáticos se dizem sobre território, domínio, limites.
frutas, silenciosas frutas, esverdeiam, amarelam, avermelham-se e, doces e maduras, se espatifam na calçada para a sorte de passarinhos que têm preguiça.
Camélia, a majestosa cadela, passa os dias em sua pose de esfinge a vigiar o que o cachorrinho da rua do lado faz para retirá-la de seu sossego.
uma abelha solitária conseguiu entrar na caixa de correio e em sua existência desgarrada passou a construir a colmeia própria ali dentro, protegida das intempéries e das aranhas invisíveis que tecem escondidas.
árvores que eram troncos secos se transformaram em sombreiros verdes.

pelas janelas que ladeiam toda a casa em um poderoso demonstrativo de todos os cardeais, também entram as histórias humanas que tanto gosto de observar e saber e que me renovam a fé na espécie.

o filho, que deixou a vida de lado, a ilha escolhida, os planos e projetos para trás para cuidar da mãe. ele está para ela. e isso é tudo. e isso é o seu mundo.
a senhora que, apesar das dores, dos anos, das incertezas, responde à repetitiva pergunta diária a dizer que ‘sim, está tudo bem, estou viva e tem sol, não posso queixar-me’ e sorri quase sem dentes.
vejo também a onda e sinto a energia leste-oeste da mulher que não sei o nome, de quem não sei nada, quando passa a levar o cão para o passeio. os passos são apressados porque, imagino, ela tem muito o que viver, ela é decidida a dizer sim e isso é contagiante, mesmo que seja só naqueles segundos.
os meninos que estudam novo idioma, aprendem novo jeito de viver; o senhor que tem uma lojinha em frente de casa para vender penal (para quem?); o carteiro que é alegria e diversão quando estende o envelope; a mulher que fala, fala alto, fala sem parar, fala tudo, fala de todos, ainda que sozinha.

esta multidão me inspira os dias. tenho interesse por todos porque as particularidades do humano, o que arquiteta cada vida, o que versa sobre identidade individual antes de chegar à coletiva, me atrai, imobiliza e alicia. o humano, apesar de tudo, é minha paisagem preferida.

quer comentar? não se acanhe.

Pin It on Pinterest