pedaços de memórias

eu só abri uma porta do armário. só isso. sem dó, sem compaixão, uma multidão pulou em cima de mim.
as gentes do meu passado vieram falar comigo e se espalhar pelo chão do meu escritório.
caixas, cartas, cartões, cadernos, cadernetas. diários.

o que fazer com esses quilômetros de linhas que falam de mim? quantas árvores foram sepultadas para que eu pudesse conservar no amarelado do papel esses anos todos?

fotografias. as juventudes diáfanas dos meus pais. seus beijos e flores daquele tempo que eles não sabiam o que a vida faria com eles.
eu sei.
olho para as fotos, viajante das décadas, como se fosse um deus que conhece o futuro. e tento avisa-los sobre os desvios e como evita-los.

fotografias. todas as infâncias que eu conheci: a minha, dos meus irmãos, do meu sobrinho, a infância dos meus filhos.
aniversários, festas de fim de ano, viagens, dias comuns. tudinho empilhado dentro de caixas como se todos esses anos adormecidos ali ressuscitassem ao abrir das tampas.

eu li muita coisa. e como se fosse uma selvagem que não se importa com a documentação peguei o picador de papel e passei a picotar tudo porque não consegui parar de chorar com tudo o que foi, com tudo que já não é, com tudo que passou.
depois, feito doida, me abracei às tiras de papel e, arrependida, chorei mais ainda.

guardei tudo num saco muito grande dentro do armário porque se as memórias são assim, esses mosaicos que a gente vai colocando as peças até formar um todo, não há problema que meus diários estejam milimetricamente rasgados, eles são o que são: pedacinhos de mim.
e aqui permanecerão.

quer comentar? não se acanhe.

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