questão de desordem pessoal

um dia desses estava a tentar pescar meus mecanismos de desordem.

acordo cedo todos os dias. raramente me largo na cama até que o sono cumpra toda sua função. mesmo assim me permito ver a madrugada chegar com seus silêncios e assombros. fico a ocupar as horas do amanhã como se ainda fossem as do hoje.

pensava que era necessidade de um tempo em que as coisas estivessem um pouco suspensas, em que o mundo não acontecesse de verdade, em que o sossego desfilasse pela casa. achava que essa minha eterna olheira era fruto do meu desejo de encontro com um momento que ainda não houvesse, um espaço entre dois dias, um vácuo entre o que é domingo e o que é segunda, um instante em que é possível dizer bom dia e boa noite no mesmo tom monocórdio.

mas a madrugada não é minha amiga. me provoca, me xinga, me acaba. a madrugada gosta de me trazer pensamentos cabulosos, de sombras, arrepios, gestos de medo. cor de jabuticaba madura com gosto azedo.

não consigo ler, nem ver filme, nem escrever uma carta para amiga distante. não me é permitido sustentar sobriedade, nem passar o dia a limpo, nem fazer oração. eu não posso testar as cores da canetinha, nem usar o microscópio, nem ouvir música, nem planejar o futuro. a madrugada me imobiliza, me segura com suas garras de raposa e fica sussurrando bobagens em meu ouvido.

chega uma hora que eu me debato tanto, que a comovo. puxo o lençol e me cubro, lhe beijo o rosto e lhe mando embora. me entrego, demente, entre os sonhos e pesadelos da realidade e do fantástico.

noite após noite, insisto, resisto, despisto. não mudo. e hoje acho (e só acho) que sei; esse motim interno, confusão programada, anarquia dos pensamentos, acontece porque preciso ter certeza do fim. só sossego quando sei que todas as possibilidades foram testadas: a função de levar o dia até o término sem que reste um único fiapo de esperança de recuperá-lo ou de ainda aproveitá-lo.

talvez seja a inevitável e essencial consciência das horas, do tempo, da finitude.

só desisto no final. só termina quando realmente acaba.

quer comentar? não se acanhe.

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