receita de magret de canard ao molho de laranja

minhas prendas domésticas são restritas, têm limites muito bem marcados e qualquer distraído que entre aqui num dia vulgar pode percebê-las sem muito esforço. a casa tem certo movimento, amigos e amigos dos filhos chegam sem hora marcada e improvisamos conforme a necessidade do momento.

não sou boa cozinheira, mas tenho alguns truques na manga. procuro mantê-los vivos para emergências de qualquer ordem.

hoje, serviço à francesa, porque Janete e Berthrand assim estão acostumados por adaptabilidade e nascença. para não cometer deslizes, não acumular vexame e, principalmente, porque o Bertharnd é excelente cozinheiro, sabe dos segredos e caminhos da boa mesa, pela primeira vez deixei que outra pessoa comandasse a cozinha.

eu, ajudante e aprendiz, tratei de registrar todos os detalhes possíveis. mais exibida, que generosa, divido a experiência de hoje.

anote.

quando a vontade de estar com os amigos começa a dar seus sinais, é a temporada ideal. um dia florido que tenha um domingo à sua espera é perfeito.

para ocasião, todos os convidados, sem exceção, precisam colaborar com os ingredientes: têm que trazer qualidades de conversas ou risadas, novidades ou viagem, música ou poesia.

coisa importante para o sucesso da receita: arrumar a mesa. recorro previamente ao enxoval especial e faço que tudo seja alvo e transparente e brilhe e reflita e multiplique a visão. gosto particularmente de uma composição: toalha branca de linho; guardanapos, mesmo tecido, num tom amarelinho muito claro, mas por natureza, não pela pátina do tempo, eles são comprometidos e sempre estão a dizer isso mostrando o anel que os envolve; os cristais se arrumam em fileira ordinária e comovente, água e vinho; a porcelana mais branca que a neve forma cama delicada, a esperar, entregue e apaixonada, pela iguaria; e vem a prataria, toda lustrada e reluzente, com a sabedoria de mil anos e a beleza serena e delicada dos talheres bem desenhados deita-se mansa ao lado dos pratos; a jarra de água é tão transparente que custa acreditar que está lá nosso líquido primeiro; deixo que o Bordeaux se exiba em seus trajes originais, a desprezar o decanter porque os amigos gostam de saber quem é quem; dois vasos com flores amarelinhas e singelas poderiam entrar no cenário para que ninguém esqueça que a delicadeza é o nosso melhor tempo, mas hoje não foram necessários, todos sabiam disso; o conjunto que apoia pimentas e outros temperos tem a dignidade Baccarat e o encantamento de sabores complementares.

primeira parte pronta.

na cozinha.

gosto do Tom Jobim e, como eu, ele também é ajudante. enquanto dedilha as frases de Wave vou prestando atenção fora do normal em cada detalhe, câmera lenta, anotando tudo que Berthrand faz, sempre com leveza e tranquilidade: depois de dourar canard e batatas, ele gira o botão do fogão, ajeita os utensílios e faz os movimentos circulares na panela que logo formam um redemoinho lento de ouro e sol – laranja e creme de leite. um perfume começa a ser visto no vapor e se espalha pelo ambiente, contorna as paredes, encontra a porta e corre pra sala. e é ele quem faz o convite, acariciando cada uma das visitas.

hora de servir.

cada um ocupa o lugar que quer ocupar. é assim, na vida e na mesa. cada um senta onde se sentir mais confortável e de um jeito que possa continuar a conversa da outra sala ou iniciar nova de sua preferência.

antes da inauguração do prato, uma rápida oração, feita com taça e com o melhor humor da ocasião: palmas ao chef. nada nos parece sério demais fora desse universo. nada é mais gostoso que magret de canard. somos todos felicidades e sorrisos, comoções e lembranças, novidades e planos. somos todos crianças brindando a alegria do encontro que nos conta que talvez seja essa a melhor receita da vida: a atenção ao amor da amizade.

quer comentar? não se acanhe.

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