sobre quase todas as coisas

ano passado, por essa época, encasquetei que era hora de uma cadeira decente aqui pro quartinho. é preciso tratar com respeito as horas de computador. na época, elegi a boa e velha Cimo, tive meus motivos e eles cobriram várias bases, desde o conforto até a estética.

meu pai tinha uma Cimo, formava conjunto com escrivaninha e armário da mesma família. escritório completo e elegante que levou como parte de seu enxoval quando casou com minha mãe. eu adorava. tudo passou, injustamente, para o meu irmão, naquela época, as coisas das meninas tinham que ser cor de rosa ou brancas ou em um monótono tom pastel. nada de imbuia para as gurias. os móveis se separaram depois que o meu irmão casou, não sei direito do destino, a escrivaninha ainda está lá, o resto ganhou o mundo para nunca mais.

encontrei minha cadeira. e ela se parece muito com a que permitiu ao meu pai horas de trabalho, ao meu irmão tempos de estudo e a mim litros de inveja. o modelo é o mesmo: Simples 1001, que de simples não tem nada, só quem faz cadeiras é que sabe. mas ela se parece também na sensação, nos dizeres que assopra no ouvido, no jeito de me abraçar.

feliz da vida, saí da loja muito bem acompanhada. a cadeira deitadinha no banco de trás, repouso de maca para espiar os caminhos da cidade antes de chegar aqui. gostei de vê-la no trajeto e ter a certeza que minha busca chegou ao fim. no entanto, coisa que não sei explicar, não a trouxe pro quartinho. cheguei em casa e ficamos paradas na garagem. logo ela, toda móvel, a começar pelo nome; logo eu, tão inquieta, a iniciar pela infância. as duas ali, estáticas, ela deitada, eu observando-a.

subi sozinha. sem cadeira, sem solução. ao entrar no quartinho encontrei minha outra companheirinha que aguentou firme as situações mais adversas que tive. sustentou, com generosidade e sujeição, todas as horas malsãs. sempre calada, sempre a olhar para o infinito da janela, sempre a declarar estabilidade, sem me exigir ou me perturbar. pés fixos que me jogam e me seguram, me lembram e me inventam, me adivinham e me libertam.

a busca louca de uma vida inteira ou a surpresa sem procura de equilíbrio gratuito? o drama da decisão sobre qual cadeira fará o cenário para o meu reinado é quase o resumo da minha existência: a eterna tentativa de conciliação, vontade de ter tudo, necessidade de completude, dificuldade de decisão, não saber conduzir permanência e ruptura.

encontrei minha cadeira e sinto a força potente de minhas imperfeições tombando nos ombros.

quer comentar? não se acanhe.

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