Renunciar ao amor parecia-me tão insensato como desinteressarmo-nos da saúde porque acreditamos na eternidade. – Simone de Beauvoir
renunciar ao prazer é empresa das mais difíceis. largar a cama num escurinho com chuva, chegar ao final da feira, sair do mar quando o sol está bem forte, se desenrolar dos braços do amado, desligar o telefone no melhor da conversa…
sou pessoa dada aos prazeres. não carrego culpas por isso, meu último dia de vida sempre é hoje e por isso gosto de vive-lo do melhor jeito. me entrego às satisfações e pronto.
abdicar do que apetece é martírio, loucura. é como a frase de Simone de Beauvoir.
agora veja como são as coisas, estava aqui, quietinha com meus botões, a aproveitar das boas coisas da mesa. poderia continuar assim, mas fiz o quê? fui ao médico. e ele, sem piedade, substituiu meu cardápio de gostosuras por um monte de coisas verdes parecidas com alface, mas de nomes estranhos.
acabou-se o que era doce. e junto acabou-se também o que era salgado e tinha na santa composição o trigo. e como se não fosse suficiente, evaporou-se o que era líquido e escocês e também tudo que tem na certidão a paternidade reconhecida como leite…
disse o doutor que preciso de uma dieta mais equilibrada e que isso fará bem para mim. contei que não dá para ser feliz sem chocolate, macarrão, uísque. “você consegue imaginar a vida sem doce de leite?”. desprezou meus apelos, fez pouco de minhas aflições, ignorou meus pedidos, deu de ombros para o meu sofrimento.
percebam a malvadeza, um chocolate pode ser substituído por uma fatia de melão, por exemplo. parecia que eu estava numa conversa com a Flora Gil.
entrei numa ciranda de contradição. fico a dançar entre ser mais saudável e ganhar mais um dia ou aproveitar o meu último e pronto.
fazer a renúncia do prazer é ultrapassar o limite da sanidade, levar na mão direita um buquê de amargura e subir no altar para fazer comunhão com a infelicidade. não gosto disso. não gosto nada, nada, nada disso.