ici repose…

pode ser que tenha sido aquele silêncio, grande e imenso, combinado com minha marcha em direção a lugar especial que me tenha despertado coisa nova.
ou talvez apenas a rispidez daquele vilarejo belo e trancado nele mesmo, sem dizer um meio sorriso a quem é de fora.
ou pode ter sido que o frio tenha promovido um curto circuito qualquer dentro de mim.

não sei explicar.
eu havia programado para 2018 fazer o caminho de Compostela.
deve ser coisa da idade ou dessa sensação eterna de estar fora do tempo, em lugar errado, presa nas gaiolas que a sociedade manda.
sou um espírito livre.
e eu só queria achar um jeito de me adaptar melhor nessa civilização maluca que não me permite viver do jeito que quero e acho certo.
achei, boba, que Compostela me daria algum sossego.
não há sossego, descobri.

por causa do turismo e de algumas expectativas bem particulares cheguei a Auvers-sur-Oise, lugar em que Van Gogh cometeu boa parte daquilo que nos espanta até hoje: o quarto, a igreja, o suicídio.
ele está lá, ao lado do irmão, numa tombe tão simples como foi sua vida, tão comovente como foram seus quadros.

o quarto também está lá. em silêncio, nenhum móvel, nenhum objeto, apenas aquele espaço vazio que obviamente é entulhado de tudo que o expectador quer.

o passeio mexeu comigo.
primeiro chorei sem parar. antes de visitar qualquer pedaço, antes de chegar ao túmulo ou à igreja ou à casa.
era uma, como direi sem parecer ridícula?, uma energia diferente, que foi se apropriando de cada contorno meu para me levar ao choro convulsivo.

este atrapalhamento me fez caminhar sem pensar em direção. e sem motivo aparente, e sem ter percebido sua chegada, de repente eu estava na frente da igreja. depois, do túmulo e da casa.
era como se fosse o contrário da lógica: como se eu estivesse parada e os endereços girassem até me alcançarem.

a experiência, que posso chamar de quase mística, foi linda e assustadora.

um encontro de silêncios, de pensamentos, de emoções.
coisa transformadora.
não sei explicar direito o motivo, mas aquela vila linda e inóspita, a paisagem, a ideia da mente louca e genial de Van Gogh sendo incompreendida, amada e odiada por ali…
a empatia de não pertencimento, independente do lugar, aquela coisa de estar fora do padrão social… tudo, tudo, tudo mexeu muito comigo.
acho que a cidadezinha foi o meu Caminho de Compostela.

ao mesmo tempo que compreendi que não haverá, nunca jamais, cura para os meus desassossegos, uma parte de minhas inquietudes ficou ali para sempre.

ici repose

quer comentar? não se acanhe.

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