pequena memória para um tempo sem memória

“Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
[…]
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.”
(José Saramago)

minha irmã e eu fomos à casa da minha mãe. ela nos convocou porque está a fazer sua 8632ª reforma e quer desentulhar uns armários. mil prateleiras com todo tipo de coisa da nossa infância.

com o arsenal de memórias que arrasto pela vida, não pensei ainda que teria surpresas de lembranças. cartas, bilhetinhos, fotos, diários, enciclopédias, figurinhas, livros, cadernos, restos de viagens, até folhas em branco, tudo a contar um pouco de mim, do que fui e do que ainda sou.

quando tratei de ir cuidar da minha vida, carreguei considerável número desse tipo de reminiscências e hoje me espantei com o tanto de mim que ainda estava lá. imagino a Dã, que ao deixar a velha casa, tratou de trancar o quarto com tudo dentro e levar as roupas e pronto. hoje encheu duas malas de bobagens que acabam se transformando nos documentos mais importantes das nossas ideias, sensações, impressões, transformações e vivências de vários períodos. minha irmã terá muita emoção pela frente…

sabe aqueles sacos de lixo de 100 litros? pois bem, acho que uns 20 daqueles transbordaram de inutilidades que foram para as mãos daqueles que fazem reciclagem. 20 sacos de 100 litros de nossa história se transformarão em préstimos a desconhecidos. é interessante pensar que um velho caderno de OSPB pode virar um convite de festa ou que uma apostila de cursinho tem chance de se transformar em papel de carta. e que cada novo objeto encontrará novas pessoas e passeará pela vida delas a também escrever suas histórias. gosto disso.

aqui pra casa trouxe uma mala inteira. algumas coisas já têm endereço certo, como os livros da infância que poderei esquecer na pracinha um dia após o outro até que todos tenham novo lar. ou os papeis de carta, que mesmo amarelados, meio engruvinhados e com as marcas do tempo, poderão contar notícias àqueles que gosto.

para todo o resto talvez eu leve a vida inteira entre renite e lágrimas, saudade e suspiros, dando conta de (re)conhecer.

é impressionante como cabe passado na vida da gente.

quer comentar? não se acanhe.

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