querido diário – ou fluxo livre de pensamento

o saca-rolhas quebrou. decerto cansou de se afundar, rodopiar e cuspir cortiça seca.
isso não é um grande drama, mas confesso minha decepção. imaginava eterna sua vida quase suicida de provocar redemoinhos mínimos para enxurradas douradas, púrpuras, róseas.

há dias não consigo engatar nova leitura. nem ouvir música. nem ler jornal.
navego sem rumo pela internet. um timão solto que me fez descobrir que os átomos do meu corpo já pertenceram a outros seres, porque o sistema fechado, que é o planeta, não permite escapatória de átomos para o espaço. o que leva à conclusão de que as partículas circulam em processos químicos e biológicos desde os primeiros tempos.
hoje, além dos meus pais e avós e bisavós e triavós e tetravós, sou também um dinossauro e uma árvore e pau e pedra e fim do caminho de alguém que nem conheci.

meu cabelo não para de crescer, de cair e de ficar branco.
meu rosto se enruga e mancha numa velocidade inexplicável.
meu corpo não aguenta as tentativas, cada vez mais espaçadas, de alongamento.

é preciso pintar o sangue com a cor das uvas.
e saber que tudo isso: eu, meu corpo que envelhece, o vinho e até o saca-rolhas ficaremos presos aqui até quando não formos mais.

quer comentar? não se acanhe.

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