velhar

acho que chega um momento em que a gente fica velho. assim, de um dia pro outro: dorme jovem, acorda velho. e depois disso só continua velhando, conforme aqueles do conto Fita Verde no Cabelo do Rosa “… como velhos e velhas que velhavam…”.

o processo do corpo até pode parecer com o de uma maçã muito suculenta que ao passar dos dias ganha cor, viço, sabor, desejo e na mesma sequência perde consistência, vermelho, gosto, massa até se transformar numa outra coisa que só na lembrança e no nome tem relação com o ponto original.

a cabeça é diferente, tem um clique, uma chave qualquer que ao ser girada abre o imenso portal do ficar velho. e nessa hora, aquelas preocupações mais prosaicas que foram desprezadas com escárnio e horror começam a ter um sorriso convidativo. os assuntos que antes não moviam pluma de pensamento passam, lugar de honra, à mesa.

de repente frases como “essas coisas não são mais pra mim”, “não tenho mais paciência para isso”, “não vou mais perder meu tempo com esse tipo de pessoa” fazem parte dos diálogos com tanta naturalidade que é impossível achar que em algum momento da vida tudo foi diferente.

a partir desse ponto, meu amigo, o lance é reconhecer e velhar.

não acho que velhar seja coisa ruim. na verdade mesmo, antes daquela fase monstruosa e cruel de decomposição do corpo, dá para afirmar que girar a chave e começar a velhar é um grande acontecimento.

ao contrário do que pensam os que ainda não alcançaram o estágio, há vantagens e elas não estão nas vagas de estacionamento do mercado. velhar é poder olhar a vida com a importância que ela tem, é tratar das coisas relevantes, é entender o tempo, é olhar pra longe e pra perto. é saber do amor e do desamor. é saber.

velhar é, sim, ter sonhos e vontades, desejos e aprendizados, desafios e conquistas. é querer mais e continuar buscando e saber que uma pontada no joelho, uma dor de cabeça, um puxão no braço são cutucões da temporada a nos contar que devemos ter pressa e calma para tratar dos infinitos que pulsam dentro de nós.

apesar dos fatos ordinários, vulgares, rasteiros que insistem, não nos resta muita coisa a não ser velhar da melhor maneira possível.

põe caramelo na maçã e vai em frente. os inteligentes conseguem, conheço um batalhão.

quer comentar? não se acanhe.

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