Sobre Curitiba Arquivo

enfarte

meu ex-marido teve um enfarte. falei alô e ouvi a frase meu pai teve um enfarte e o silêncio de todos os segundos do tempo – deve ter durado na vida do relógio só o momento de uma puxada de fôlego, mas enquanto o ar invadia os pulmões do meu filho para ele concluir que estava tudo bem, senti meus olhos tremerem, as pernas bambearem. …

sabiá-laranjeira

há obra no prédioda janela vejo homens no telhadoequilibristasum passo, outro passomais um ‘vá por aqui que é melhor’, escutoem cada passo a conquista:sobreviver mais um segundo jogo perigoso fico constrangida por estar sentada no escritório óculos na ponta do narizdedos nas teclascopo d’águacanetinhaseu fingindo que não os vejo eles fingindo que não me veem enquanto os meninos se equilibram no telhado penso que queria …

amizade

o Eduardo me perguntou se perdi amigos durante a pandemia. pior, perdi amigos ao longo da vida. algumas pessoas entraram na minha vida com a potência de mil trovões, habitaram momentos repletos de verdades, transformaram com a força de suas vivências a minha. depois se dispersaram no mundo, a deixar um rastro de saudade. outras me escapuliram porque não soube cultivar a flor. deixei de …

as girafas

não tenho ponto de partida para essa simpatia com as girafas. acho que nasci assim. quando eu era menina e algumas almas faziam coro a gritar no recreio gi-ra-fa, gi-ra-fa eu ficava um pouco triste por causa da vontade de depreciação, mas em meu íntimo sorria quieta. e pensava que se nascesse de novo, gostaria de nascer girafa e apostava que naquele mundo outras iguais …

reminiscências

sempre tinha uma meia ou um cinto de pano ou uma camisa velha no fundo do cesto de vime onde ficavam as roupas para passar.mesmo quando minha mãe, uma tarde por semana, forrava a mesa da lavanderia com um cobertorzinho e um lençol velho, colocava Clara Nunes para girar, e passava a roupa de toda família, esgotando as forças e a paciência, no final do …

à flor da pele

tenho marcas. marcas no corpo. não só as dos anos, das emoções, das intensidades. tenho marcas por conta de patologias. várias, variadas patologias. uma vez, um médico me disse que eu era um modelo para estudo de caso interessante. tese. inscrições em congressos. artigos científicos. acumulo reações alérgicas. tantas, que às vezes acho que todas são uma só e que ela reage ao ar que …

aprendi sentir saudade

naquele tempo em que era possível esticar a mão e encostar no mundo ao abrir a porta de casa, eu não sabia sentir saudade.qualquer alteração nas faculdades me fazia agarrar o telefone e tratar de explicar minha condição. se a vontade era de andar solta pela XV, enfiava o tênis e me largava na caminhada. a Bahia era logo ali e eu arrumava, na ponta …

gerúndio

estou quieta aqui. há silêncio. não escrevo e não leio. fico desenhando.desenhando. desenhando. desenhando. são traços infantis, sem técnica e sem compromisso. gosto da caneta escorregando no papel. mais ainda de repetir folhinhas dessa minha floresta imaginária que vai se compondo num jeito infinito que de repente encontra a beiradinha do papel e estanca. despretensiosa, passo horas debruçada nessa nova onda que não precisa obedecer …

falta d’água

todos esses dias azuis, esse recorde de dourado, esse tempo de estio… a corrente que vai emendando um dia no outro me faz visitar os dias de rodízio, as noites de esperança de ouvir dança nos canos, as saudades de uma abundância, fácil e frívola de outros tempos. falta água. falta paciência. mais falta faz o escrúpulo de, às vezes, intimamente, bem quietinha, pensar que …

estrangeira

não importa o que aconteça comigo, por onde eu ande, o que faça. eu sou estrangeira. é uma condição de nascimento. está impresso em mim este traço de inadequação. o que eu faço para o bom convívio é tentar não perturbar muito. me esforço para me misturar ao meio, reprimo as maneiras desajustadas, a fala estridente, a vontade permanente de contestação – o exercício do …

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